Conforme já comentei algumas vezes nesta coluna, muitos ainda se surpreendem com a sobrevivência dos formatos dos reality shows na televisão mundial. Já se passaram 17 anos desde o estrondo causado pela estreia do formato Big Brother na Holanda (embora a reality tv seja mais antiga que este programa, é bom lembrar) e ainda parecemos dispostos a assistir a esta quantidade de atrações sobre a “vida real”. Já entendemos também que o que estes programas entendem por real é absolutamente complexo, mas, mesmo assim, parecemos inevitavelmente atraídos para a tela quando são veiculados.
Outra crítica recorrente à reality tv é que os programas parecem ser bastante previsíveis. As fórmulas são as mesmas; os patrocinadores, repetidos. As tensões muitas vezes são óbvias – já intuímos que certos papéis (alguém que personifique uma espécie de vilão deve aparecer, outro mais ingênuo, e alguém que traga algum tipo de humor à trama) sempre existirão. Os desafios que supostamente trariam algum oxigênio à atração se repetem.
Eu ousaria dizer, então, que todos os reality shows encaram um mesmo problema: precisam sempre refletir sobre como trarão diversão a um espectador assíduo que, inevitavelmente, assimilará a lógica por trás destes programas. Alguns deles são muito interessantes nas informações que trazem, mas fracos no quesito reality – é o que acontece, por exemplo, com Corre e Costura, atração da Fox Life. Outros encontram seu público justamente por fortalecer o orgulho de pertencer a algum lugar. É o que acontece quando nos regozijamos ao ver crianças de nossos estados em um programa como The Voice Kids, não importa quanto “talento” elas tenham.
Em sua oitava temporada, RuPaul’s Drag Race – verdadeiro fenômeno mundial, já analisado previamente nesta coluna – confirma todas as regras descritas acima. As provas enfrentadas pelas competidoras são sempre as mesmas: improviso, fotogenia, costura, canto, dança, humor, criatividade, trabalho em equipe. Os efeitos colocados à narrativa – como os sons de portas batendo abruptamente e de trovões explodindo, para dar dramaticidade aos conflitos – são toscos, exagerados, usados propositadamente de forma excessiva. Por que, então, continuamos fascinados por assistir a RPDR?
Todos os reality shows encaram um mesmo problema: precisam sempre refletir sobre como trarão diversão a um espectador assíduo que, inevitavelmente, assimilará a lógica por trás destes programas.
Quem é espectador fiel do programa sabe que ele faz muito mais do que colocar no ar uma competição pelos talentos das drags. Após oito temporadas, os papéis estão marcados: há as drags comediantes, verdadeiras mestres no stand-up comedy. Há as que arrasam no fishness, ou seja, são extremamente femininas, confundindo-se com estrelas do mundo da moda. Há as pageant queens, as rainhas dos concursos que, quase como as misses, só faltam citar O Pequeno Príncipe e costumam ser criticadas por confiar excessivamente na própria beleza. Há as drags especializadas em incorporar alguma celebridade, por vezes repreendidas pela falta de uma estética própria. Há as mais alternativas, que apostam na quebra dos padrões de beleza (como drags acima do peso) ou numa estética fundamentada no estranhamento (como as que incorporam um estilo mais punk, agressivo, usam barba, misturam referências do belo e do feio, etc).
Resumindo, quando assistimos a RuPaul’s Drag Race, não queremos necessariamente reconhecer talentos: há um material mais interessante e que é renovado a cada temporada. Ainda que permaneça essencialmente o mesmo programa, ano após ano, a atração se renova justamente ao se traduzir como uma grande metáfora de vários elementos da vida. A realidade se oxigena justamente nas questões demasiadamente humanas trazidas à tona pelas drags, escolhidas a dedo, pelo direcionamento dado pelos comentários dos jurados e – por que não? – pela edição.

Vejamos as questões já tensionadas nesta oitava temporada. Profissionalismo versus amadorismo é sempre um conflito recorrente. Quem vale mais: as que se apresentam há anos no mercado e reivindicam um espaço a partir de uma carreira consolidada (como Bob the Drag Queen e Thorgy) ou as que são evidentemente talentosas (como Kim Chi) mas começaram ontem? As cosmopolitas, cheias de referência, devem ser postas no mesmo patamar das interioranas, que não tiveram acesso às mesmas oportunidades? Deveríamos valorizar aqueles que vieram de baixo, from the ghetto, e que se viram à base do improviso, como Chi Chi DeVayne? A carta do “I’m a cheap queen” – traduzindo: uma drag pobre, de poucas condições, construída com materiais baratos – usada por Chi Chi é, afinal, um mérito ou simplesmente uma desculpa?

Da mesma forma, algumas jornadas nos surpreendem justamente pela imprevisibilidade e, mesmo, pela beleza de suas derrotas. É o que ocorre ao decorrer dos episódios com Derrick Barry, vista com preconceito pelas demais por ser uma imitadora de Britney Spears, famosa em Las Vegas, mas bastante limitada enquanto drag. As concorrentes a criticam pelo fato de Derrick não montar um drag, e sim mimetizar uma mulher.
Sua identidade é questionada, por ser considerada com pouca personalidade. As críticas que Derrick leva de todos, rivais e jurados, são severas, pesadas, e sua reação é absolutamente comovente: ao invés de rebater, ele humildemente aceita-as e tenta-as acatar, muitas vezes sem sucesso e de forma patética, em suas próximas performances. Em certos momentos, buscando aprimorar-se, aparece com uma maquiagem risível. Somos requisitados a refletir: isto é motivo para eliminá-lo ou levá-lo até à final do programa? Em nossa escala de valores, onde se situa a humildade?
Em resumo, ao ser assumir essencialmente previsível e fundamentalmente único, RuPaul’s Drag Race continua dando sinais de uma longa vida na televisão, com fôlego para muitas outras temporadas. Parece, enfim, ter encontrado uma fórmula de sucesso, alimentado pelo caráter multifacetado e criativo do mundo drag.
Em tempo: há uma versão tupiniquim de RPDR na internet, chamada Academia de Drags. Já em sua segunda temporada, o programa é capitaneado por Silvetty Montilla, drag já com 28 anos de carreira, que encara o desafio de encarnar uma Mama Ru ainda mais escrachada e autodepreciativa (por exemplo: ao tirar sarro da própria dificuldade em pronunciar nomes estrangeiros, ela sempre coloca a culpa na “chapa” mal colocada). Assumidamente uma cópia de RuPaul’s, o programa diverte justamente por escancarar as diferenças – sobretudo, no que diz respeito ao menor orçamento – da atração original. Fala muito sobre a “brasilidade” e como nos vemos enquanto cultura. Mas isso já é tema de outro texto.