O que nos une dentro de uma identidade razoavelmente homogênea, nos liga às mesmas raízes, nos torna parte de algo em comum, algo mais forte e mais profundo que nós mesmos? O que nos torna latinos, ibéricos, e de que forma nossas origens determinam algo naquilo que somos? É em busca destas respostas que o programa Sangue Latino vai atrás da realização de entrevistas com personagens que, em alguma medida, carregam a chave para tantas indagações vagas: os artistas.
O programa ocorre pelas mãos de um importante jornalista e tradutor brasileiro, Eric Nepomuceno. No ar pelo Canal Brasil desde 2010, Sangue Latino tira proveito de um formato extremamente simples (a entrevista em profundidade, sem grandes arroubos, com o foco quase exclusivo no personagem), no intuito de desvendar as intricadas tramas da latinidade.
Se os artistas são, tal como dizia o poeta Ezra Pound, as antenas da raça, é legítimo que se vá até eles em busca de pistas para uma compreensão de nós mesmos. Afinal, os artistas – pelo menos os grandes – são como que “condenados” a explicar a nós, reles mortais, porque somos o que somos, como chegamos até aqui e, por fim, tal como radares que veem bem adiante, para onde vamos.
Sangue Latino tem formato minimalista, propositalmente econômico, deixando bem claro: quem interessa aqui são as personas que são convidadas ao encontro com Eric Nepomuceno. A única trilha sonora, composta por uma milonga de Yamandu Costa, já nos coloca prontamente no clima esperado ao assistirmos ao programa (curiosamente, “Sangue Latino”, dos Secos e Molhados, nunca toca).
Não por acaso, os programas são todos trabalhados na estética do preto e branco, eliminando toda e qualquer interferência das cores, à exceção de uma – obviamente, o vermelho que remete à latinidade, ao que provém do humano, à vida pulsante que emerge das falas dos que aceitam significar-se perante as perguntas capciosas de Nepomuceno.
A marca de Sangue Latino é privilegiar o ‘menos’: são muitos os momentos de silêncio, em que entrevistador e entrevistado estão frente a frente mas nada dizem – algo que, em outras linguagens, seria considerado supérfluo ou entediante.
Os enfoques dados pelas câmeras nos artistas são entrecortadas com cenas em que vemos paisagens (sempre permeadas pelo vermelho e os tons de cinza) e ouvimos a alguma leitura feita por eles, de um texto próprio ou de outra pessoa que admiram.
A marca de Sangue Latino é privilegiar o “menos”: são muitos os momentos de silêncio, em que entrevistador e entrevistado estão frente a frente mas nada dizem – algo que, em outras linguagens, seria considerado supérfluo ou entediante, mas que aqui faz todo sentido e torna o programa uma atração a ser vista com os ânimos apaziguados, em momento de contemplação.
Por perguntas capciosas, entenda-se aqui as indagações mais simples do universo – fazendo jus àquilo que dizia Milan Kundera em A Insustentável Leveza do Ser, de que as perguntas realmente sérias são aquelas que uma criança pode formular. Ou seja, Eric Nepomuceno aqui não parece interessado em fazer elucubrações que demostrem ao público sua reconhecida inteligência (ou seja: não é ele a estrela aqui).
O que suas questões buscam é servir como “escada” para que estas personalidades venham à tona e possam ofertar um pouco de suas produções. Não por acaso, as perguntas por vezes se repetem com convidados diferentes.
Há alguma relação desta técnica com a usada pelo saudoso Eduardo Coutinho – que, aliás, é um dos convidados de Sangue Latino. O essencial é o que surge das perguntas mais banais, pois só a partir da não-interferência é que pode vir à tona aquilo que há de mais precioso de cada um (não interessa o tema, mas sim o que a situação de encontro entre duas pessoas, dizia o mestre Coutinho). Assim, tudo que emerge aqui provém de questionamentos infantis.
À poeta portuguesa Matilde Campilho, Nepomuceno pergunta com o que ela sonha e o que é imaginação. Ao escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez, pergunta se ele é religioso. Ao cartunista argentino Liniers, pergunta se ele acredita em Deus. Ao escritor moçambicano Mia Couto, pergunta do que ele tem saudade.
O resultado disso é o surgimento de grandes registros acerca destes artistas, que nos ajudam a compreender melhor as suas obras. Curiosamente, a conversa com Eduardo Coutinho gira em torno da morte (Coutinho faleceria em fevereiro de 2014, morto pelo filho, que tinha problemas mentais), e o documentarista confessa seu medo de morrer, e o quanto a arte é permeada pela pressão da vida.
“A finitude é uma coisa central em tudo que se produz em termo de arte e na vida das pessoas, porque a vida não se vive duas vezes”, pontua. “A memória é uma ficção, e eu tenho uma relação com ela não como uma procura pela verdade”, diz Mia Couto, trazendo pistas sobre a natureza de sua produção.
Como resultado, Sangue Latino se torna um profícuo passeio rumo à(s) nossa(s) cultura(s), à família de nossa família. Os episódios trazem pistas tanto sobre o que nos une, quanto ao que nos separa. Isso surge em várias falas marcantes, como as de Mia Couto. “Em muitas línguas africanas, não há palavra para dizer futuro. O futuro é um território sagrado. Não nos angustia o não saber”, aponta o escritor.
Em sua entrevista, Chico Buarque explica que sua relação com os países latinos surgiu com a música que ouvia em casa, por influência dos pais. Já Pedro Juan Gutiérrez revela o quanto seus romances transbordam das fases difíceis vivenciadas em Cuba.
Mais uma pérola escondida na programação do Canal Brasil, Sangue Latino já segue há sete anos mostrando que é possível investir numa espécie de televisão “franciscana” em que menos e mais – e que não é preciso grandes arroubos ou emoções exacerbadas para levar conteúdo de qualidade à população.
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