É curioso perceber como somos tão críticos em relação ao nosso produto. A primeira temporada de 3%, primeira série brasileira produzida pela Netflix e distribuída mundialmente, foi massacrada por boa parte da crítica no país, que escolheu ressaltar os piores defeitos da produção (que, de fato, são muitos) e descartar a história sem nem pestanejar. Lá fora, a coisa foi bem diferente.
No último relatório da Netflix, em dezembro de 2017, 3% ocupava o segundo lugar como a série mais maratonada da plataforma, perdendo apenas para American Vandal. Estamos falando de uma série filmada em língua portuguesa e todos sabemos como os americanos rejeitam produções estrangeiras. As críticas por lá também foram surpreendentemente positivas.
Isso, claro, não quer dizer que a série é boa só porque os filhos do Tio Sam a elogiaram, mas é sintomático ver a diferença do olhar dos brasileiros e, por que não, o resquício da síndrome do vira-lata. Afinal, aplaudimos de pé os absurdos, incongruências e exageros de La Casa de Papel, mas olhamos através do microscópio cada frame de 3%. A grama do vizinho é sempre melhor.
Depois de uma primeira temporada interessante, mesmo com seus imensos problemas que iam desde roteiro e atuação até mixagem de som, a série de Pedro Aguilera aprendeu bastante. Há um visível maior investimento por parte da Netflix e os roteiros se preocupam em expandir o universo para deixá-lo mais rico em narrativa e complexidade.
Só para lembrar, a história se passa num mundo distópico, depois que diversas crises deixaram o planeta devastado. No Brasil, a maior parte da população sobrevivente mora no Continente, uma espécie de grande São Paulo miserável, onde falta desde saneamento básico e energia até comida e educação. Ao completar 20 anos de idade, todo cidadão tem direito de participar do Processo, uma seleção que oferece a única chance de morar em Maralto, um outro lugar no qual a sociedade é justa, tudo é abundante e há oportunidades de uma vida digna e rica. Mas somente 3% dos candidatos são aprovados anualmente. Os reprovados não podem tentar novamente. Para morar em Maralto, o candidato deve ser um trabalhador incansável, dedicado e se destacar intelectualmente.
Em tempos em que, aqui no Brasil, resistir é a única forma de se fazer ouvir, 3% consegue ser atual e bastante perturbadora.
A temporada inicia dias antes do Processo número 105. Enquanto Michele (Bianca Comparato) e Rafael (Rodolfo Valente) tentam se adaptar ao novo mundo do Maralto, Fernando (Michel Gomes) e Joana (Vaneza Oliveira) precisam voltar para o Continente e encarar uma vida de miséria. Entretanto, a Causa — uma guerrilha que tenta destruir os absurdos do Processo — tem um plano para impedir o processo seletivo para sempre, a qualquer custo.
Se no primeiro ano a série acertou ao mostrar as etapas brutais do Processo e a falácia da meritocracia, a segunda temporada consegue dividir muito bem o tempo de tela entre os moradores do Maralto e os sobrevivente do Continente, ressaltando ainda mais o abismo social daquelas pessoas. Nessa nova leva de episódios, a abordagem crítica é a mesma e não há sutileza no discurso. Em tempos em que, aqui no Brasil, resistir é a única forma de se fazer ouvir, 3% consegue ser atual e bastante perturbadora.
Apesar de 3% ter um grave problema na construção de seu texto, o segundo ano transforma seus atores em personas complexas, cada uma com suas crenças e brigas internas. Não é algo fácil de fazer. Há, ainda, um interessante questionamento sobre como nós mudamos quando determinadas situações são favoráveis a nós. É pior ser cúmplice de um sistema corrupto ou compactuar com uma causa que, muitas vezes, prefere matar e morrer acima de tudo?
São nesses dilemas que a força da série mora e nem os personagens nem o público têm uma resposta fechada para isso. Se ao mesmo tempo a produção coloca um didatismo chato em determinadas cenas, também insere dúvidas e reflexões sobre nosso próprio modo de viver em um mundo que não está longe de ser dividido entre Maralto e Continente.
A temporada também entrega uma das cenas mais bonitas e tocantes de toda a série até agora, quando a população do Continente faz uma procissão dias antes do início do Processo. Misturando a esperança por parte daqueles poucos 3% que poderão viver em um mundo melhor e a melancolia daqueles que vivem com a certeza de que jamais poderão mudar o status quo, a série produz poesia pura e brasileira, em um carnaval triste cantado por Liniker e Ilú Oba de Min.
Outro acerto trazido da primeira temporada é o ritmo. Ainda com os diversos problemas básicos (já falaremos deles), 3% não perde o fôlego, fazendo com que o público se mantenha interessado. Quase todos os episódios terminam com um gancho forte e há pelo menos duas reviravoltas bastante inventivas, o que mantém a história sempre andando. O final da temporada também termina de forma esperta, servindo tanto como um series finale como um season finale.
Infelizmente, todos esses acertos parecem ficar escondidos e os erros são sobrepostos. Os roteiristas têm uma imensa dificuldade em criar diálogos críveis, deixando tudo artificial e forçado demais (o uso de palavrões antes das frases, algo presente nos diálogos de séries norte-americanas, irrita um bocado). Se alguns atores fazem milagres com passagens do texto ruins, outros ressaltam a fragilidade do roteiro, repetindo tudo sem naturalidade. Vaneza Oliveira, a Joana, é uma personagem interessante e complexa, mas sua raiva e revolta com o mundo parecem sair de uma aula de teatro para iniciantes, assim como Luciana Paes, a Cássia, que consegue deixar as cenas um tanto constrangedoras.
Ainda assim, novos atores dão brilho e conseguem manter uma certa fluência num texto truncado, especialmente Fernanda Vasconcellos e Maria Flor. Quem se destaca, também, é a ótima Cyntia Senek, que já havia ganhado bastante atenção em Malhação e aqui mostra um potencial imenso para ser uma das personagens mais interessantes numa possível terceira temporada. Laila Garin também é uma ótima aquisição, embora interprete uma vilã bastante estereotipada.
A direção de arte e figurino melhoram, mas tudo ainda soa amador. Há um orçamento maior nesse ano, mas 3% ainda peca na execução e no uso de efeitos especiais. Michele, por exemplo, luta e vive o inferno vestindo um macacãozinho elegante e etéreo, assim como todo o cenário do Maralto. O mesmo problema se aplica aos moradores do Continente, que estão sempre sujos e vestindo trapos, algo que faz sentido para a narrativa, mas visualmente não convence. A direção de som melhora, mas é perceptível o barulho de passos produzidos em estúdio e a falha nos efeitos sonoros quando os personagens se movimentam.
3% ainda está bem longe de ser uma série em que as qualidades se sobressaem aos defeitos, mas há um enredo político e um discurso honesto que agregam uma força interessante. É um mundo destruído, injusto e cruel, uma crônica real do nosso entorno. A produção consegue mostrar que na briga entre Maralto e Continente, não há bonzinhos ou vilões, mas que a luta por igualdade resiste. Paralelamente, 3% também resiste ao próprio ranço do público brasileiro.