Há algumas semanas, um artigo escrito pela jornalista Luciana Coelho, para sua coluna sobre séries no jornal Folha de S. Paulo, despertou em mim uma reflexão que, na verdade, já vem sendo bastante discutida: será mesmo que as maratonas estão acabando com os seriados como o conhecemos? Após a popularização da Netflix, o modelo de consumo desses produtos mudou significativamente. Sem comerciais, sem precisar esperar uma semana entre um episódio e outro e sem depender do valor salgado das TVs por assinatura, a Netflix revolucionou a televisão de forma permanente. O propósito do texto, então, é entender o fenômeno e refletir se ainda existe esperança para quem prefere assistir a um episódio por semana.
Primeiramente, é necessário entender que, com exceção das séries produzidas exclusivamente pela Netflix (Orange Is the New Black, House of Cards, Hemlock Grove, Bloodline, Demolidor, etc), a maioria das produções disponíveis no site vem de um acordo entre a empresa e os diversos canais norte-americanos. Assim, embora diversas séries que já tiveram suas histórias concluídas estejam disponíveis na íntegra, a Netflix precisa aguardar a exibição original na televisão para, depois de alguns meses, poder exibi-las. Foi assim com o estrondoso sucesso de Breaking Bad, que embora tenha se popularizado após a entrada no catálogo da empresa, só pode ter seus episódios finais disponibilizados via streaming após algumas semanas de exibição no canal a cabo AMC. Better Call Saul, por exemplo, é uma parceria entre a Netflix e a AMC e seus episódios são liberados após a exibição na TV, semanalmente. Sendo assim, a não ser que a Netflix produza umas 30 séries originais por ano, seu catálogo ainda depende da televisão aberta ou fechada.
A divisão do público que escolhe maratonar uma série ou vê-la aos poucos vai do gosto. Assim, temos aqueles que preferem assistir suas produções semanalmente, aqueles que preferem esperar a temporada acabar para poder vê-la na sequência, aqueles que simplesmente não podem ou não querem ter TV por assinatura, aqueles que não tem tempo para acompanhar os engessados horários da televisão (ainda que os canais façam diversas reprises durante a semana), aqueles que não tem paciência para comerciais, aqueles que não estão acostumados a ter que esperar meses entre uma temporada e outra e só assistem à séries já concluídas, aqueles que não aguentam diversas temporadas e por aí vai.
Séries da Netflix não atestam qualidade, mas oferecem um conforto e poder de decisão ao assinante.
Fato é que a mudança na forma de consumir séries começou, ao menos no Brasil e em diversas partes do mundo, pela falta de respeito dos canais por assinatura. No auge de Lost e Heroes, o público brasileiro precisava esperar meses entre a estreia original nos EUA e a estreia no Brasil. Geralmente, a diferença de tempo era de quatro meses, mas em casos de séries com maior sucesso, como House e 24 Horas, a espera podia ser de até seis meses. A arbitrariedade dos canais também frustrava, quando decidiam, por exemplo, dublar boa parte da programação porque, segundo pesquisas internas que nunca são divulgadas, era o que o grande público queria.
Assim, foram com os torrents (arquivos transferidos e divididos em partes) que as séries ganharam popularidade no mundo todo e mobilizaram centenas de legendadores não oficiais que, sem nenhuma remuneração, conseguem legendar um episódio com apenas um dia de diferença entre a exibição original nos EUA e o arquivo para download. Tudo isso bem antes da palavra streaming virar moda. Os torrents, embora pareçam enfraquecidos, ainda são a forma mais fácil de ficar por dentro da programação americana – e não é à toa que o programa Popcorn Time, que se utiliza de arquivos em torrent, seja considerado uma Netflix pirata, já que traz milhares de séries com apenas algumas horas de diferença de sua exibição original.
As séries originais da Netflix, aclamadas quase que unanimemente, são disponibilizadas com todos os episódios em sequência. Mais do que incentivar seu público a fazer maratona, a plataforma se destaca por dar liberdade criativa aos roteiristas, mas engana-se quem acha que eles não precisam criar ganchos surpreendentes para segurar seu público no final dos episódios. Mesmo que o público-alvo sejam aqueles que preferem uma narrativa sequencial, nada impede que o usuário possa simplesmente abandonar a produção em qualquer ponto. Diferente dos ganchos para que o espectador volte na semana seguinte, a Netflix precisa criar interesse para que o usuário clique em “próximo episódio”. Assim, séries da Netflix não atestam qualidade, mas oferecem um conforto e poder de decisão ao assinante.
Se a Netflix – ou outras empresas com a mesma proposta – vão mudar definitivamente a forma de consumir séries, ainda é cedo para dizer. Tal como os CDs foram responsáveis pela morte do vinil, a Netflix parece fazer a venda de DVDs agonizar (Os Simpsons, por exemplo, não terá mais os DVDs de suas temporadas produzidos). Fato é que, mesmo sendo um saudosismo barato, é um pouco triste perceber que assistir a episódios semanais anda cada vez mais difícil – seja por falta de tempo ou pela pressão em assistir a todos os episódios de uma só vez. É como se fosse uma competição. Perde-se a reflexão, a sensação de comunidade, de conversação, já que cada um assiste no seu próprio ritmo. Para os críticos, o trabalho fica ainda mais complicado, já que devem assistir e comentar tudo antes que se tornem atrasados, obsoletos.
Ao mesmo tempo, há uma falsa impressão de que todas as séries agora são assim. Não são. Se pensarmos no exemplo mais óbvio – Games of Thrones – percebe-se que o modelo de um episódio por semana ainda funciona. Mesmo quem assiste pela televisão ou por torrent no dia seguinte, acompanhar os episódios se torna um evento semanal. Efeito parecido acontece também com The Walking Dead ou os reality shows, como RuPaul’s Drag Race, outra produção que se popularizou na Netflix, mas acabou aumentando sua audiência quando exibida na televisão.
É interessante pensar como seriam algumas grandes séries se elas fossem liberadas em lote. A própria Breaking Bad, por exemplo, exige de seu público uma percepção da evolução dos personagens, que certamente muda quando vista na sequência, sem nenhum intervalo para respiro. Ao mesmo tempo, diversas séries funcionariam melhor se tivessem todos os seus episódios liberados. Outro questionamento é se essas séries com episódios liberados na sequência sobreviveriam caso tivessem seus episódios divulgados uma vez por semana. House of Cards, com um roteiro mais lento e complexo, fisgaria o público da mesma maneira?
De fato, a forma de assistir a séries, entendendo séries como elas realmente são – episódios semanais, horário fixo, comerciais – está mudando, mas não acabando. Assim, o grande segredo parece ser identificar qual produção exige um formato mais sequencial e rápido e qual funcionaria de maneira semanal. Para uma série semanal, é necessário não se basear tanto no que o público espera e não mudar o roteiro de acordo com a audiência, estendendo produções além do seu prazo de validade, por exemplo (algo que a Netflix não está livre, diga-se de passagem). Os roteiros precisam ser cada vez mais apurados, inteligentes e fora do comum.
Já para as séries com temporadas completas já disponibilizadas, é necessária uma atenção na sequência, na progressão da história e na coerência das personagens, levando em conta que, por serem consumidas de uma só vez, as séries precisam ir além do básico, não serem esquecíveis. De qualquer forma, os novos modelos de consumo devem forçar os roteiristas a buscar mais qualidade na forma de se contar uma história. O público, consequentemente, fará sua escolha.
Off-Topic: O Brasil, entretanto, está prestes a viver um retrocesso. Operadoras como Vivo, Oi e Claro/NET podem passar a limitar o acesso à internet fixa através de franquias mensais, na qual usuários que quiserem utilizar mais dados teriam que comprar pacotes adicionais, assim como acontece com a internet móvel. Assistir a uma temporada inteira de uma série, por exemplo, passaria facilmente da franquia mensal estipulada pelas operadoras.