Sejamos francos. Nós já sentimos a queda de qualidade de Black Mirror desde a terceira temporada, quando a série passou a ser produzida pela Netflix e não mais pelo canal britânico Channel 4. A mudança de casa pode nada ter a ver com essa queda — afinal, o time de roteiristas e produtores é basicamente o mesmo —, mas é claro como o roteiro de Charlie Brooker, criador de Black Mirror e quem assina todos os episódios, acabou ficando formulaico.
Brooker sempre disse que Black Mirror não era apenas uma série sobre tecnologia e seu reflexo na sociedade, mas algo mais parecido com Além da Imaginação (The Twilight Zone), que usava o sobrenatural para fazer um paralelo como nosso modo de vida. Mas as pessoas parecem não comprar esse argumento e nem Brooker parece muito convencido. Desde a estreia, em 2011, o autor sempre quis nos dizer que a tecnologia usada de forma errada fará o ser humano cometer as maiores tragédias possíveis. Esse discurso impactou lá no começo, mas agora a série parece não ter mais nada a dizer. Virou qualquer coisa.
Os três novos episódios que formam a quinta temporada de Black Mirror (o filme interativo de 2018, “Bandersnatch”, é considerado um spin-off) trazem argumentos interessantes, mas nada memoráveis, tal como a temporada passada. Se antes as histórias ecoavam na nossa mente e faziam o público pensar em tirar a mão do celular por um tempo, agora é provável que a gente até de uma olhadinha no Twitter enquanto assistimos aos capítulos, sem nem ao menos pensar que “isso é muito Black Mirror“.
Black Mirror simplesmente ficou ruim e nós estamos em negação.
O primeiro episódio (“Striking Vipers”, de longe o melhor da temporada) traz uma reflexão bastante pertinente a respeito de relacionamentos, rotina e monogamia. Na história, um homem está se sentindo sufocado dentro de um casamento engolido pelo cotidiano. Seu único prazer é um jogo de luta de realidade virtual, dado a ele por um velho amigo, em que por meio de Inteligência Artificial, o usuário pode entrar no game e sentir tudo o que os personagens sentem. Os amigos resolvem jogar juntos, porém, durante a primeira luta entre os dois, esses personagens virtuais, um homem e uma mulher, se sentem atraídos sexualmente e começam a transar online, coisa que se repete por muito tempo, abrindo uma crise no casamento de um deles e fazendo os dois homens questionarem até a própria sexualidade.
A mensagem pode chegar diferente dependendo do repertório de vida de cada um, mas o episódio é eficiente ao mostrar personagens complexos vivendo um dilema muito comum a todos. Entretanto, a série utiliza novamente algo já visto e revisto tanto dentro de Black Mirror quanto em diversas outras produções: jogos de videogame, realidade aumentada e tudo o que pode haver de mais incrível e perigoso nisso. A conclusão não chega a ser ruim, mas também não é nada diferente do que já vimos em séries que falam de relacionamento, como Easy, também da Netflix. Novamente, é o óbvio embalado por qualquer artifício tecnológico.
Nessa mesma linda segue o segundo episódio, “Smithereens”, que conta a história de um motorista (de Uber, claro) que durante uma corrida sequestra um jovem que trabalha em uma empresa de redes sociais estilo Facebook e Twitter. O motorista não quer dinheiro, apenas bater um papo por telefone com o dono desta empresa, que está isolado em algum lugar do mundo sem redes sociais.
O enredo tem o estilo do longa Um Dia de Cão e acerta ao deixar o público bastante preso no modo de vida daquele motorista. A direção consegue criar uma tensão crescente e cenas claustrofóbicas até o final, especialmente pelo episódio se passar quase todo dentro de um carro. A conclusão, entretanto, é a mais panfletária possível. Aquele homem se sentia culpado pela morte da esposa porque, um dia enquanto dirigia, ele foi checar uma notificação no celular e acabou batendo carro, matando a esposa e o motorista do outro veículo. Ou seja, a mensagem é: parem de ficar tanto tempo nas redes sociais, parem de digitar enquanto dirigem e vão viver a vida. Não há outra interpretação possível. O episódio, claro, traz reflexão, mas soa moralista demais. Nós já entendemos que as redes sociais podem ser tóxicas.
Já o último episódio traz Miley Cyrus interpretando Ashley O, uma cantora amada por milhões de adolescentes. Ashley traz um discurso empoderado e positivo, enquanto ela mesma se sente sufocada e controlada por sua empresária, a própria tia, que a criou após a morte dos pais. O mote é o lançamento de uma boneca-robô, chamada Ashley Too, um brinquedo que utiliza inteligência artificial para que todos os adolescentes tenham uma versão da personalidade de Ashley em casa.
O episódio é uma bagunça do começo ao fim e, embora seja divertido, termina com uma patacoada envolvendo uma boneca que se revolta por ser controlada, uma cantora que tenta se livrar das manipulações da tia para ser quem ela quer ser e duas adolescentes que ajudam Ashley a se libertar enquanto resolvem seus próprios problemas pessoais. O capítulo fala do vazio adolescente, da forma como celebridades são fabricadas e tratadas e como a mídia pode ser perversa. Tudo isso é inserido da forma mais pasteurizada possível. A história acaba parecendo qualquer filme adolescente da Sessão da Tarde e termina com um clipe no melhor estilo Hannah Montana de ser.
Refém do seu próprio universo, Black Mirror agora dá a impressão de querer falar apenas com fãs da série ou reverberar tudo o que há de mais clichê. Não há mais interpretações, impacto ou análise. Talvez pelo mundo já estar vivendo em uma espécie de Black Mirror ainda mais bizarro do que vimos na série ao longo dos anos, tudo agora se mostra fraco. Ou Black Mirror simplesmente ficou ruim e nós estamos em negação.