Buffy, a caça-vampiros é difícil de recomendar. Primeiro porque pode parecer improvável levar em consideração uma série com esse título e tema. Segundo porque a primeira temporada é fraca, o que pode afastar algumas pessoas. Mas perde quem não dá uma chance à caçadora. Há 18 anos, mais precisamente em março de 1997, o até então desconhecido diretor e roteirista Joss Whedon (Os Vingadores) começava a escrever seu nome na história da televisão com a estreia de uma das séries mais inteligentes, profundas e cultuadas da cultura pop.
Nos Estados Unidos, quando os principais seriados encerram suas temporadas, geralmente os canais sobrevivem de reprises e pequenas produções feitas para tapar buraco, que também servem para testar se novas séries vão dar certo. Esse período é conhecido como mid-season. Foi assim que, no verão americano, a Warner lançou Buffy, a caça-vampiros.
O projeto saiu da cabeça de Whedon, que já havia escrito um roteiro da história para o cinema, gerando um fracassado filme homônimo, lançado em 1993, com Donald Sutherland no elenco (assista ao trailer aqui). Tendo seu roteiro modificado pelo estúdio, o filme foi massacrado pela crítica especializada e Whedon começou a perceber como Hollywood realmente funcionava. Em 1997, a história se repetiria. Ele foi convidado a escrever o roteiro de Alien – A Ressurreição, uma grande oportunidade visto o apelo que a franquia já tinha e o orçamento generoso para a produção do longa. Porém, quando Alien estreou, Whedon constatou que, novamente, seu roteiro tinha sido alterado. A crítica não o poupou.
Mas ainda em 1997, as coisas começaram a mudar. Quatro anos após o filme sobre uma caçadora de vampiros, a produtora Gail Berman (American Idol, 24 Horas, House) resolveu ler o roteiro original de Whedon e oferecer à pequena emissora The WB. Para Whedon, Buffy era a mistura de dois grandes sucessos da época: Barrados no Baile, sobre a vida de adolescentes num condado da Califórnia, e Arquivo X, suspense que fez um estrondoso sucesso nos anos 90. A ideia principal era satirizar os filmes de terror hollywoodianos nos quais a garota loira e frágil entrava no beco escuro e morria nas mãos de monstros. Com o interesse do canal, mudança do formato para série de TV e mais liberdade criativa para Whedon, a The WB deu sinal verde e encomendou os 12 episódios que formariam a primeira temporada da série. Buffy renascia.
Protagonizado por Sarah Michele Gellar (Scooby-Doo, O Grito) e com um orçamento limitadíssimo – US$ 3 milhões para a produção de toda a temporada -, o primeiro ano é marcado pelo trash, mas acabou caindo no gosto popular. Nos anos seguintes, cada episódio custaria cerca de US$ 2,3 milhões. O que começou cafona tornou-se referência quando o assunto é televisão. Buffy já foi citada como a segunda melhor série de todos os tempos pela revista Empire e a nona pela Entertainment Weekly. Além disso, o início da série foi marcado pelo boom da Internet, sendo um dos primeiros programas de televisão a ter uma base de fãs online, com discussões em fóruns e uma maior interação entre público e realizador, já que Whedon estava sempre atento às novidades da época. Mas por que, quase duas décadas após a estreia e 12 anos após seu final, a série ainda é tão cultuada?
Ao prestar atenção, percebe-se que o mais admirável em Buffy está na sutileza em retratar como nós, meros mortais, precisamos enfrentar nossos demônios pessoais todos os dias.
Se o início de Buffy é bobo, quase infantil, as demais temporadas trazem uma carga dramática que poucas séries conseguem alcançar. Angel (David Boreanaz) era o galã e par romântico de Buffy, mas acabou virando um dos melhores vilões, firmando a segunda temporada como uma das mais tensas. Suas lutas contra Buffy eram muito mais psicológicas do que físicas, o que acabou tendo importante impacto no desenvolvimento dos personagens. Após, temas como homossexualidade, morte e traição se tornariam recorrentes. A cada semana, Buffy enfrentava vampiros e demônios, fossem reais ou metafóricos.
O episódio “The Body”, na quinta temporada, é um exemplo da genialidade de Whedon. Focado na morte de um importante personagem, a primeira cena foi filmada quase sem cortes, entregando uma atuação inspiradíssima de Gellar. Com um episódio marcado pela ausência de trilha sonora, Whedon mostrou que, mesmo sendo a heroína da história, nem Buffy nem o público podiam lutar contra a morte natural. Mais assustador do que monstros, somente a própria vida.
Outro exemplo do brilhantismo de Whedon é o episódio Hush, da quarta temporada. Cansado de ouvir que Buffy era interessante somente pelos seus diálogos rápidos e espertos, ele dirigiu um episódio no qual os moradores de Sunnydale (cidade onde a série se passa) ficam mudos. Com 3o minutos sem nenhum diálogo, Hush é considerado o melhor episódio de toda a série e rendeu a Whedon uma indicação ao Emmy de melhor direção, além do respeito da crítica especializada. No sexto ano, ao invés do silêncio, temos um episódio musical igualmente aclamado.Whedon também subverteu a metáfora da punição de jovens que morrem nos filmes de terror. Nas produções dos anos 80, os adolescentes sempre morriam enquanto faziam sexo, uma mensagem nada sutil e bastante conservadora. Buffy não só manteve relações com vampiros, como foi a voz da causa feminista de Whedon. Sua mãe era professora de história e apresentou a ele o preconceito causado por uma sociedade machista. Assim, Buffy lutava contra homens opressores ao mesmo tempo em que tentava encontrar seu caminho como mulher.
E se Buffy segurava a série, os personagens secundários tinham o mesmo nível de importância. O crescimento de Willow (vivida por Alysson Hannigan, de How I Met You Mother) durante os sete anos é admirável, principalmente na sexta temporada, quando ela acaba flertando com o mal. Assim como Anya (Emma Calfield), que de um demônio qualquer de um caso da semana, virou um importante e inesquecível personagem recorrente. Xander (Nicholas Brendon) era o alívio cômico da série e Spike (James Marsters) acabou virando uma das figuras mais interessantes da trama. Whedon também não tinha medo de arriscar: se livrou de personagens sem medo, colocou uma irmã para a protagonista na quinto ano que não havia sido mencionada nas quatro temporadas anteriores e tirou o par romântico de Buffy, criando uma série própria para ele. Angel durou 5 anos.
Buffy, a caça-vampiros foi ao ar durante sete temporadas e ganhou uma continuação em HQ (veja aqui). É uma história sobrenatural, mas poderia não ser. A série tinha espaço para complexas tramas existenciais, metáforas sobre o consumo de drogas, maturidade e agonia existencialista. Ao prestar atenção, percebe-se que o mais admirável em Buffy está na sutileza em retratar como nós, meros mortais, precisamos enfrentar nossos demônios pessoais todos os dias.
Todas as temporadas da série estão disponíveis na Netflix. Assiste sem preconceito e depois volta para me agradecer.