Quando em 2003, já longos 12 anos atrás, a Marvel e a FOX decidiram adaptar as aventuras do Demolidor, ou Daredevil, confesso que um misto de empolgação e excitação tomou conta de mim. Não fui um adolescente que consumiu avidamente HQs e afins, mas levei comigo pela infância, adolescência e vida adulta alguns heróis deste mundo fantástico das histórias em quadrinhos. Um deles foi Matt Murdock, o homem por trás da roupa vermelha do “Defensor Destemido”, que, apesar de extenso, seria o nome mais fiel ao original. Entretanto, Demolidor – O Homem sem Medo foi um desastre.
Ben Affleck, que viverá o novo Batman (que os deuses permitam que esteja em melhor forma), conseguiu com o personagem o Framboesa de pior ator. Falo isso apenas como um indicativo de quão ruim o longa-metragem foi. Affleck não conseguiu dar a força necessária ao personagem. Nas telas do cinema, o Demolidor parecia uma versão sem visão do Homem-Aranha da trilogia com Tobey Maguire: bobo, juvenil, quase um não-merecedor dos “dons” que possuía. Como o filme garantiu uma “extensão”, o capítulo exclusivo da Elektra foi como pisar em cocô e não conseguir se livrar. Pior, apenas garantiu que o cheiro ficasse mais impregnado.
Talvez por isso, quando soube que a Netflix pretendia lançar a saga de Matt Murdock em formato de seriado, fiquei um tanto ressabiado. Para quem não está muito familiarizado com os quadrinhos, nem tenha assistido ao filme, Demolidor conta a história de Matthew “Matt” Michael Murdock, que ficou cego quando era apenas um adolescente após se envolver em um acidente com um caminhão que carregava lixo tóxico. Em compensação, a partir deste momento, seus outros sentidos foram ampliados, de forma que ele conseguia ouvir pessoas à distância, identificá-las pelo odor, ler sem ser em braile e etc.
Na série, já conhecemos Murdock (Charlie Cox, de Boardwalk Empire) quando adulto e recém-formado em direito. Drew Goddard, o responsável pelo desenvolvimento de Demolidor para a TV, conseguiu dar vida nova ao personamgem. O seriado é inúmeras e infinitas vezes mais sombrio e maduro que o filme. A primeira temporada é focada em apresentar o personagem, seus amigos e seu primeiro grande inimigo. Foggy Nelson (Elden Henson, de Efeito Borboleta) foi seu colega de faculdade e é sócio no escritório de advocacia aberto em Hell’s Kitchen, bairro de Nova York onde cresceram; Karen Page (Deborah Ann Woll, de True Blood) é uma jovem ajudada por Nelson e Murdock que torna-se secretária do escritório de advocacia deles; e Wilson Fisk (o excelente Vincent D’Onofrio, de Nascido para Matar) é o antagonista, um empresário com passado obscuro e que planeja dominar Hell’s Kitchen.
Somos constantemente confrontados com o conceito de justiça: os fins justificam os meios?
Existem elementos no Demolidor que o aproximam do Batman. Em primeiro lugar, o personagem é um anti-herói que vive nas sombras, tal qual Bruce Wayne. A grande diferença é que Matt não é um homem rico, pelo contrário. Ele decide retornar ao seu bairro de infância para abrir o escritório e encontrar um equilíbrio entre clientes pagos e benfeitorias aos moradores de Hell’s Kitchen. A segunda coisa que aproxima ambos personagens é o conflito sobre os limites da justiça. Em Demolidor, somos constantemente confrontados com o conceito de justiça: os fins justificam os meios? Vale tudo pelo bem maior? Quem garante que o que lutamos seja o bem maior? O que é ser um cidadão de bem?
E são justamente estes elementos que tornam a série tão boa, já que Drew Goddard e sua equipe de roteiristas não se esforçam em responder estas perguntas, mesmo que elas sejam constantemente jogadas no colo do espectador. Em determinado momento, o próprio Murdock questiona seus valores acerca da justiça, chegando a acreditar, por vezes, que suas medidas fogem ao que ele acredita ser correto. Talvez a vantagem do seriado seja apresentar esse conflito moral (e filosófico) de forma sutil e absurdamente humana, logo, nos pegamos pensando nestes conceitos sem que sejamos forçados.
Vincent D’Onofrio constrói um dos melhores vilões da atualidade, e não apenas pensando em TV. Seu Wilson Fisk é frio e calculista, mas permite escapar várias camadas de humanidade. Em alguns momentos, chegamos a pensar que ele está arrependido de alguma maldade que tenha cometido, que logo se perde na próxima sequência. Ele e o Demolidor pensam ser diamatralmente opostos, contudo, são muito parecidos. Suas visões sobre futuro e sobre “fazer o bem” são distorcidas, mesmo que em algum momento possam parecer próximas dos padrões socialmente aceitos. A construção de Wilson Fisk, o Rei do Crime (ainda que ele ainda não o seja na primeira temporada), é paralela à do Demolidor, quase como uma metáfora para nos mostrar que o bem e o mal estão mais próximos do que imaginamos, e que, embora achemos que estamos do lado certo, podemos estar redondamente enganados.
A primeira temporada completa de Demolidor está disponível no serviço de streaming Netflix. A segunda temporada tem estreia prevista para abril de 2016. Já aguardamos ansiosamente.