Estão cada vez mais comuns as séries norte-americanas que buscam condensar em narrativas curtas os fenômenos e grandes escândalos nacionais (vide, por exemplo, The Dropout). Aparentemente, há uma nova onda de tramas criadas sobre a crise causada pelo lançamento em 1995 do Oxycontin, opioide colocado no mercado pela Purdue Pharma e que provocou milhares de mortes e vidas arruinadas. Dopesick, disponível no catálogo da Star+, é um desses títulos. O problema dos opioides é tão profundo – em 2020, os EUA registraram um recorde de mortes de overdose – que a história do crime praticado pela família Sackler segue sendo contada e recontada em filmes e séries.
Dopesick está dentre as narrativas mais interessantes, lançada em 2021, e que busca trazer cara e corpo aos dramas dessas milhares de pessoas. Dirigida por Barry Levinson (de Rain Man e Bom Dia, Vietnã), a série em oito capítulos opta por narrar a crise dos opioides por três eixos centrais: os problemas sob esfera das vítimas, a investigação da promotoria pública e, por fim, as particularidades da família Sackler, um pequeno grupo de bilionários que lutava para manter um medicamento nas farmácias para aumentar sua fortuna, pouco importando os indícios dos danos que ele estava causando.
São 8 partes de uma trama dolorida – e, a partir do princípio de que ela retrata os fatos que aconteceram, absolutamente revoltante. Em suma, o Oxycontin (um opioide que tem como base a oxicodona, e que tem efeitos similares ao da morfina) foi jogado pela empresa Purdue Pharma, dos Sackler, no mercado americano com o apoio de um rótulo, dado pela FDA, que o documentava como pouco propenso a provocar vícios, uma vez que seus princípios ativos causariam um certo efeito platô, não provocando euforia.
Dopesick não tem nada de prazeroso, e as vitórias apresentadas como resultados dessa trama são parciais.
Obviamente, estava tudo errado – e Dopesick intenta desvendar como foi possível que o órgão de regulação americano liberasse tal rótulo. A história então envolve as relações complexas e obscuras entre o marketing das indústrias farmacêuticas e o lobby executado em agências governamentais e políticos, fazendo com que remédios possam ser tratados como se fossem um produto qualquer. No caso do Oxycontin, o marketing se dava em cima da ideia de ressignificar o conceito da dor como um efeito colateral que poderia ser combatido.
A história escandalosa contada por Barry Levinson se baseia na obra de uma jornalista. Beth Macy escreveu Dopesick: Dealers, Doctors, and the Drug Company that Addicted America, livro de não-ficção que intenta revelar toda a trama corrupta e desumana que levou a uma verdadeira crise nacional de saúde, cuja repercussão nociva ecoa até hoje entre os americanos.
As tramas em ‘Dopesick’
Obviamente, ao virar narrativa audiovisual, há um esforço em focar sobretudo nas histórias envolvendo personagens – esse, inclusive, é um dos trunfos trazidos por esse tipo de linguagem. Dopesick então se centraliza em três eixos de personagens, que vão tentar trazer alguma coerência ao enredo.
Em primeiro plano, está o doutor Samuel Finnix (papel de Michael Keaton, vencedor do Emmy e do Globo de Ouro pelo seu desempenho estupendo). Ele é o médico de uma pequena cidade na região de Appalachia, área pobre e cercada de montanhas em que parte dos seus moradores vive da exploração do carvão. É em espaços desse tipo, em que há muitos acidentes com trabalhadores (e, por consequência, muita dor), que a Purdue Pharma tenta enfiar a todo custo o seu novo remédio.
Entre os pacientes do doutor Finnix, está Betsy (Kaitlyn Dever), uma jovem mineradora cuja homossexualidade não é revelada para a família conservadora e religiosa. Ela tenta juntar dinheiro para mudar com sua namorada a algum lugar mais tolerante. Mas, por conta de um acidente nas minas, ela será uma das tantas pessoas a receber uma indicação do Oxycontin, entrando em um buraco sem fundo.
Em outro eixo, está a promotoria pública, que faz esforços – a princípio infrutíferos – de enfrentar a trama burocrática e a rede lobista dos Sackler para tentar denunciá-los criminalmente. Este lado ganha corpo a partir do religioso Rick Mountcastle (papel de Peter Sarsgaard) e a impetuosa Bridget Meyer (Rosario Dawson), que precisam mover montanhas para poder expor o que está acontecendo pelo país.
Por fim, aparecem os “vilões”, representados, obviamente, pelos bilionários donos da Purdue Pharma. O espírito da família é incorporado centralmente em torno de Richard Sackler (vivido por Michael Stulhlberg, em uma interpretação competente e incômoda), que tenta encontrar seu lugar nessa família em que todos os herdeiros tentam se equiparar aos feitos de um tio, Arthur Sackler, que criou esse modelo de negócios ao ajudar a colocar o Valium no mercado.
Richard é uma espécie de loser na família, e vai tentar tudo o que for possível para conseguir se destacar entre os parentes. Mas toda a concepção em torno dos Sackler, evidenciando uma certa ideia de breguice old money, tenta deixar claro que essas são pessoas completamente desconectadas da realidade da maior parte da população.
É tudo muito chocante – sobretudo o quanto tanto as autoridades quanto os donos da Purdue Pharma discutem a comercialização de um remédio como se estivessem tratando de um bem de consumo qualquer. Há bastante foco nas operações de vendas e em que como os representantes comerciais são treinados para seduzir médicos e apresentar o Oxycontin como um produto irrecusável. Esta parte é, inclusive, abordada de uma forma tridimensional a partir do personagem de Billy Cutler (Will Poulter, de Black Mirror: Bandersnatch), que vê ali uma oportunidade de melhorar de vida, sem se questionar sobre a falta de ética de seu trabalho.
Dopesick não tem nada de prazeroso, e as vitórias apresentadas como resultados dessa trama são parciais – vale lembrar, por exemplo, que o Oxycontin está até hoje presente no mercado farmacêutico, inclusive o brasileiro. Mas esse é o preço que se paga para quem quer consumir narrativas de não-ficção.
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