A produção The Dropout, minissérie da Star+, consegue reunir dois motes em alta no entretenimento recente: as histórias sobre golpistas e a crítica sobre a cultura capitalista em torno das startups e do fascínio pela tecnologia em geral. Já vimos várias outras histórias que seguem estas trilhas, mas aqui estamos diante de algo especial: a existência de uma personagem – real – perfeita.
A série compartilha com o público uma leitura sobre a trajetória de ascensão e queda de Elizabeth Holmes (trazida ao público em uma performance memorável de Amanda Seyfried), uma jovem contaminada pelo espírito empreendedor que, supostamente, contamina toda a América. Seu sonho de vida é criar algo que revolucione o mundo – e, claro, tornar-se milionária com sua invenção. Seus ídolos são símbolos da cultura pop: Steve Jobs e Yoda, de Star Wars.
Depois de uma espécie de jornada espiritual/ profissional, que envolve um intercâmbio na China – onde conhece um sujeito bem mais velho, meio sinistro, chamado Sunny (vivido por Naveen Andrews, de Lost), que se torna seu namorado e parceiro de negócios –, ela finalmente concebe a sua ideia: a de criar uma tecnologia que seja capaz de fazer testes para várias doenças com apenas uma gota de sangue. Deste modo, seria possível fazer diagnósticos de maneira muito mais precoce, salvando milhares de vidas. Configuraria, assim, uma revolução no sistema de saúde americano.
A concepção parece boa, e em seguida Elizabeth precisa conquistar investidores para a sua startup. Ocorre, no entanto, que ela não tem garantia de que a tecnologia que ela promete pode ser desenvolvida. Ainda assim, Holmes se lança ao convencimento dos endinheirados, que parecem bastante propensos a fazer parte desta revolução (quem não gostaria de mudar o mundo?), mesmo que ela seja apenas uma miragem.
The Dropout é configurada como uma crítica potente à cultura contemporânea dos sonhos simbolizados pelo universo das startups, que celebra a possibilidade de unir a ganância financeira com a perspectiva de fazer algo realmente importante.
The Dropout, portanto, é configurada como uma crítica potente à cultura contemporânea dos sonhos simbolizados pelo universo das startups, que celebra a possibilidade de unir a ganância financeira com a perspectiva de fazer algo realmente importante. E está tudo lá na Theranos, a empresa que Elizabeth Holmes consegue fundar: a ideia de ajudar as pessoas (o mote da Theranos é algo como “ninguém mais vai precisar se despedir cedo demais de seus entes queridos”), de seguir o legado de seus ídolos, de trabalhar em empresas disruptivas, e, claro, de enriquecer.
Tal qual em outras séries que trazem este olhar cínico sobre o universo da tecnologia (como, por exemplo, Silicon Valley), The Dropout parece estar o tempo todo tentando jogar na cara do espectador: o golpe estava sempre lá, mas muita gente não queria enxergar.
Um estudo sobre Elizabeth Holmes
Com um elenco de estrelas – que inclui atores do calibre de Stephen Fry, William H. Macy, Alan Ruck e Sam Waterston – The Dropout parece percorrer um caminho meio arriscado. Há um claro caráter de denúncia quanto ao sonho das startups e sobre como o discurso cego sobre os avanços tecnológicos oriundos sobretudo das empresas do Vale do Silício virou uma isca fácil para que truqueiros pudessem triunfar.
Neste sentido, Elizabeth Holmes se tornou a pessoa perfeita para simbolizar a derrocada dessa fé irrestrita nas startups. Depois de deixar a faculdade de Stanford (inspirada em suas referências, como Steve Jobs, que também nunca terminou a faculdade – daí o título “dropout”), Holmes conseguiu convencer vários milionários e cientistas de que ela havia encontrado uma espécie de tesouro, uma ideia absurdamente boa, na qual muita gente gostaria de embarcar.
Para completar, Elizabeth ainda dá a sorte de surfar no espírito do seu tempo. Ela é jovem, mulher, e pode representar um token de algo que todos desejam apoiar: uma líder feminina mandando em um universo governado por homens. Ela parece imune às críticas porque criticá-la vai parecer reproduzir um discurso do machismo. As mulheres que a veem como uma fraude – como a cientista Phyllis Gardner, vivida por Laurie Metcalf, de The Big Bang Theory – são pintadas como traidoras do movimento feminista.
Mas The Dropout também corre um certo risco por tentar problematizar a figura de Elizabeth Holmes para além desse contexto social. Ela é apresentada ainda na infância, e seus pais, segundo sugere a série, têm participação importante na constituição de sua personalidade problemática. Sua mãe, Noel (Elizabeth Marvel), ao saber que a filha foi vítima de estupro na faculdade, diz que as mulheres passam por isso e a estimula a engolir e seguir em frente. Seu pai, Chris (Michael Gill), é um ex-executivo demitido da Enron, e está sempre a postos para estimular a filha a “seguir seu sonho”, não importe o que custar.
Soma-se a isso a relação completamente problemática entre Elizabeth e Sunny, uma mistura de pai e amante, com toques de abuso no meio. Tudo isto vai pintando a empreendedora como uma vítima, além de vilã, e que sua personalidade complicada pode também ser fruto disso. É um risco e tanto, e que pode fazer os tantos prejudicados pela Theranos ficarem de cabelos arrepiados.
Contudo, olhando pelo campo da ficção, é inevitável destacar que a série da Star+ consegue criar uma representação multifacetada e perturbadora de uma personagem das mídias que parece falar de muita coisa. O trabalho feito por Amanda Seyfried ao encarnar Elizabeth Holmes é simplesmente espetacular. Ela consegue dar à empreendedora todo um ar desajeitado e constrangedor, bem como exibir as suas transformações (como a projeção da voz em tom mais grave) para tentar parecer mais séria. Fica até difícil lembrar que Seyfried foi a mocinha bem delicada de tantas comédias românticas.
Tudo isso isso torna a Elizabeth Holmes de Amanda Seyfried bastante assustadora, e faz com que The Dropout seja uma série altamente recomendada para quem nutre um fascínio cego pelo tal universo da inovação – mesmo que isso ocorra a qualquer custo.
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