A série Hannibal, cuja primeira temporada data de 2013, foi uma aposta arriscada da emissora da NBC ao resgatar um dos psicopatas mais fascinantes do cinema – o psiquiatra canibal Hannibal Lecter, imortalizado pela performance de Anthony Hopkins na trilogia iniciada pelo sucesso de O Silêncio dos Inocentes (Silence of the Lambs, de 1991). Pode-se dizer que, ao mexer com um personagem “sagrado” no imaginário coletivo, a rede tinha um desafio grande: estender esta narrativa sem parecer inferior ou oportunista em relação aos filmes, baseados nos livros do escritor Thomas Harris.
Creio que o desafio foi vencido com sucesso. Hannibal, a série, se coloca como um produto independente à saga dos filmes (ainda que compreenda a mesma história) e marca parentesco com o que eu chamaria de “séries terapêuticas”: aquelas que propõem um mergulho nos meandros da mente humana e propõem a exposição algum tipo de terapia aos espectadores, como In Treatment, Lie to me e as brasileiras Sessão de terapia e Psi. Como vivemos em uma cultura no qual o autoconhecimento é uma busca irrecusável, é quase esperado que muitos de nossos produtos de entretenimento explorem este fascínio que temos pelas histórias que revelam aquilo que foge aos limites da consciência.
Hannibal é um prato cheio – literal e metaforicamente – em vários sentidos. Na série, acompanhamos o desenvolvimento da trama do psiquiatra pelo olhar de Will Graham (o ator britânico Hugh Dancy), investigador do FBI que utiliza métodos pouco ortodoxos para desvendar crimes. Já no primeiro episódio, Will informa ter dificuldades no tratamento social, e se autodeclara como alguém que possui nuances do espectro autista, pois tem problemas em travar relacionamento e manter contato visual com outros (talvez, na minha visão, este seja um dos poucos buracos da trama, pois Will Graham se revelará empático e, em vários episódios, demonstrará necessidades de contato humano).
O personagem de Will é fascinante: trata-se de um perito que elucida crimes hediondos por uma espécie de clarividência que o coloca na mente dos assassinos, contaminando-se com seus aspectos mais sombrios. Aos poucos, Will Graham vai se dando conta que se torna cada vez mais difícil para ele visualizar o que é real e o que são os delírios de uma mente que pode estar doente. Afinal, o que ele vê efetivamente aconteceu, ou são apenas as ilusões de um portador de uma doença mental?
Hannibal, a série, se coloca como um produto independente à saga dos filmes (ainda que compreenda a mesma história) e marca parentesco com o que chamaria de ‘séries terapêuticas’: aquelas que propõem um mergulho nos meandros da mente humana e propõem algum tipo de terapia aos espectadores.
Para poder manter algum tipo de estabilidade neste mundo interno de uma escuridão quase insuportável, Will tem apoio de seu psiquiatra, nada menos que Hannibal Lecter, que aqui assume novas nuances na interpretação do ator dinamarquês Mads Mikkelsen (de A Caça, 2012). A performance de Mikkelsen se aparenta do Hannibal de Anthony Hopkins: ambos são intelectuais que apresentam um certo cinismo constante na sua postura, vestem-se impecavelmente (nunca vemos este Hannibal de Mikkelsen sem seus indefectíveis ternos), são notórios gourmands (em quase todos os episódios, serve pratos finíssimos feitos com os exóticos ingredientes que já bem conhecemos). Mas Mads Mikkelsen, com sua expressão permanentemente impassível, sua incapacidade de soltar um sorriso qualquer durante a temporada, acrescenta um ar ainda mais lúgubre ao psicopata.
Talvez um dos grandes trunfos desta trama seja que ela proporciona um mergulho na mente não só de Will, mas de vários portadores de doenças mentais, como a de um homem que tem sua sanidade destroçada por um temor cerebral e de uma mulher acometida pela síndrome de Cotard, em que a pessoa passa a acreditar que está morta. A única mente que acabamos por não visitar é a do próprio Hannibal – por mais que ele mesmo faça terapia com a doutora Bedelia du Maurier (Gillian Anderson, de Arquivo X, que está deslumbrante). Ao avançar da série, os episódios reproduzem as visões de Will Graham (por momentos, parece que estamos assistindo aos filmes mais surreais de David Lynch) e sua angustiante luta em reconhecer onde se situa o limite entre o que vê e o mundo que transcorre lá fora. O medo de Will é o pavor de perder a si mesmo. Como profere sabiamente o psiquiatra Hannibal Lecter em um momento da série, não há maior solidão que a de ter uma doença mental.
Em suma, trata-se de uma narrativa que inova ao mergulhar nas camadas do inconsciente daqueles que, de alguma maneira ou outra, situam-se à margem da normalidade – revelando cenas certamente bem mais assustadoras do que as que apenas se atêm a mostrar a violência do “mundo real”. Além disso, a série é esteticamente primorosa e tem uma direção de fotografia impecável. Mas fica a dica: encare apenas se tiver estômago forte.
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