O ano era 2009. Bastardos Inglórios, o memorável filme sobre nazismo de Quentin Tarantino, chocava com uma cena inicial absolutamente tensa. Em uma fazenda na França, um coronel entra em um casa em que há a suspeita de que uma família judia esteja escondida.
Se você viu o filme, certamente nunca esqueceu esta cena. Mas, mais do que isso, provavelmente você lembra do semblante enigmático do coronel Hans Landa, o caçador de judeus, vivido pelo ator austríaco Christoph Waltz. O rosto e a performance de Waltz parece tê-lo gravado na cultura como um sujeito tão cínico quanto perturbador.
Começo com essa lembrança pela sensação de que O Consultor (Prime Video) recupera o mesmo arquétipo eternizado por Christoph Waltz no filme do Tarantino. Só que, na série, estamos diante de tipo de sátira. O que se debocha aqui é o universo das startups e o ideal de trabalho que elas costumam propagar.
Criada por Tony Basgallop (que também produziu o suspense Servant), O Consultor se passa em uma empresa de videogames para celular chamada CompWare. Entendemos que se trata de um negócio milionário – ou que pelo menos finge ser. O escritório obedece todo o estereótipo daquela fachada estilo “Great Places To Work”: ambiente moderninho, coffee breaks de vez em quando e a ideia de que os funcionários ali presentes estão projetando o futuro.
Mas logo no começo da série, uma tragédia ocorre: o CEO e criador da empresa, o coreano Mr. Sang (Brian Yoon) é assassinado dentro do escritório por uma criança (!). Pouco tempo depois, chega à CompWare um consultor chamado Regus Patoff (papel de Waltz), que havia sido contratado por Sang para redirecionar e salvar a empresa em um caso de fatalidade como essa.
É tudo muito sombrio e misterioso. Mas, aparentemente, poucos funcionários parecem se importar com a chegada do intruso. Na verdade, apenas dois se incomodam: Elaine (Brittany O’Grady, de The White Lotus), uma espécie de assistente faz-tudo da CompWare, e o programador genial mas preguiçoso Craig (Nat Wolff).
Horror corporativo
Inspirado no romance homônimo de Bentley Little, a grande graça de O Consultor está no deboche com que retrata os ambientes corporativos contemporâneos – em especial, as empresas de tecnologia que oferecem a visão de uma nova faceta do capitalismo, em que os funcionários (quase todos jovens) estariam amarrados por um grande propósito.
A grande graça de O Consultor está no deboche com que retrata os ambientes corporativos contemporâneos – em especial, as empresas de tecnologia que oferecem a visão de uma nova faceta do capitalismo.
É uma balela, é claro. Por isso, diverte que a abordagem da CompWare beire sempre a tiração de sarro, com a ideia de que os funcionários levam a sério demais aquilo que estão fazendo. O mais curioso, inclusive, é o esforço dedicado pelos dois personagens centrais, Elaine e Craig, para tentar descobrir os segredos do consultor e tentar salvar a empresa. Em vários momentos, o espectador tende a se questionar: por que eles simplesmente não pedem demissão e vão trabalhar em outro lugar?
Obviamente, se isso ocorresse, não haveria história. E a dupla está propensa a investigar o mistério em torno daquela figura estranha e cheia de particularidades. Regus Patoff, logo sabemos, tem sérias dificuldades para subir e descer escadas, não gosta de tecnologia e mantém alguns rituais estranhos. Além disso, é frio e cruel: em certo momento, demite um funcionário por não gostar do cheiro dele.

Seu estilo de gestão é selvagem: ele tende a jogar os funcionários uns contra os outros, como se eles mesmos estivessem dentro de um dos videogames que a CompWare comercializa. Fica claro em todas as cenas que Patoff simboliza uma postura corporativa que enxerga os “colaboradores” de maneira totalmente desumana – ainda que, eventualmente, ele sirva um caro coquetel de camarões para todos.
Com poucos personagens que destacam (quase toda a história se centra em Patoff, Elaine e Craig), O Consultor vai elencando uma série de subtramas que agregam o tom de suspense e mistério. Algumas partes beiram a bizarrice: logo sabemos que este consultor está envolvido com um universo excêntrico de russos que tiveram partes de seus corpos substituídos por próteses tecnológicas.
São camadas que vão sendo acumuladas (a boate obscura que Patoff leva Craig; o mistério envolvendo o ourives que faz ossos de ouro; a forma com que o consultor convence Mr. Sang a contratar seus serviços; a relação que Patoff mantém com o menino assassino) para engajar a audiência nesse suspense. E tudo isto funciona bem. O problema de O Consultor, entretanto, é que quase tudo fica pelo caminho.
É quase como se estivéssemos vendo a uma temporada curta (são apenas 8 episódios) mas que, para entendermos o que está acontecendo, só mesmo seguindo acompanhando a segunda temporada. Resta saber se O Consultor é tão intrigante assim para deixar o público sedento por saber mais sobre Regus Patoff. Minha hipótese é que é pouco provável que isso aconteça.
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