Um dos fenômenos brasileiros recentes mais interessantes é a “indústria” do feminejo, que envolve compositoras e cantoras que encontraram espaço (e mercado) na música sertaneja, outrora marcada pela masculinidade. O maior ícone deste universo, claro, é Marília Mendonça, que, em seus poucos anos de vida, levou o gênero a uma transformação estupenda a partir de suas composições e performances.
Pois é nesse mar que navega Rensga Hits!, série produzida pela Globoplay, que se apresenta como uma espécie de comédia romântica que intenta, além de divertir, expor os meandros desta indústria. Ela gira em torno de Raíssa (personagem de Alice Wegman), uma moça do interior de Goiás que sonha em construir uma carreira no sertanejo, embora esteja amarrada às expectativas da vida do interior: casar, ter filhos e cuidar da casa.
Mas a primeira cena da série (que guarda ares de Tieta que, ao ser expulsa da cidade, acaba ganhando uma vida melhor) já evidencia o tom aplicado a Rensga Hits!: esta é uma atração que pretende falar de mulheres empoderadas. Na hora de subir ao altar, Raíssa revela ao noivo que sabe está sendo traída (um dos pré-requisitos básicos ao sertanejo) e resolve abandonar tudo para buscar o seu sonho.
As tramas conservadoras melodramáticas andam lado a lado com certos atrevimentos dentro de uma série que, supostamente, está focando no público consumidor do sertanejo.
Ela parte então para Goiânia dirigindo seu carro velho, a “Bandida”, de 1986 – que logo fica atolado em um lamaçal. É desta cena inóspita de uma mulher vestida de noiva tentando mover seu veículo que surge a música-tema de Rensga Hits!, um delicioso sertanejo chamado “Desatola Bandida”, trilha original da série.
Logo, uma sequência de acontecimentos levará Raíssa às portas da Rensga Hits, um selo (que parece um tanto com uma fábrica) comandado com mão por Marlene (vivida por Deborah Secco, que parece inadequada para o papel). Nesta empresa, também são contratados a cantora patricinha Gláucia (Lorena Comparato), o cantor Deivid “Cafajeste” (Alejandro Claveaux) e o compositor Isaias (Mouhamed Harfouch).
Ocorre que a Rensga Hits não reina absoluta nesta indústria. Ela rivaliza com a Joia, o selo gerenciado por Helena (papel de Fabiana Karla, que está perfeita e engraçadíssima). Este embate em prol deste “reinado” pela música sertaneja, em busca de hits e de viralização da internet, é um divertido contraponto às tramas emocionais dos personagens.
‘Rensga Hits!’: conservadorismo e inovação
Como muitos críticos apontaram, um dos trunfos de Rensga Hits! é que ela faz um aceno mais efetivo da Globo ao lucrativo mercado da música sertaneja, em ascensão há mais de década. Há, portanto, uma clara celebração do estilo de vida e dos valores interioranos – um tema também em alta por conta do sucesso de Pantanal, uma outra trama ficcional ambientada na região centro-oeste.
Por outro lado, a sensação de superprodução – que sugere o intuito de espelhar a indústria milionária em torno de nomes como Marília Mendonça, Nayara Azevedo e Maiara e Maraísa – acaba por deixar o retrato de Goiás um tanto apagado na série. Isso se desenvolve, ao que parece, especialmente nos sotaques dos atores, que soam um tanto forçados.
Mas a verdade é que Rensga Hits! é muito divertida e consegue prender o espectador numa trama leve e alegre. Contudo, não é possível não se atentar ao que alguns jornalistas apontaram em suas análises: a série da Globoplay acaba sendo pouco ousada nas tramas enfocadas a partir dos seus personagens e exagera bastante na exploração de temas melodramáticos já batidos.
Há, por exemplo, alguns elementos narrativos mais velhos que andar para frente: pai que abandonou a filha e acaba cruzando com o caminho dela, casamento acabado no altar, filha que não sabe que tem uma irmã fora do casamento, um homem que parece um príncipe e conquista a amada disfarçando sua beleza, um casal que não pode ficar junto por causa de motivos profissionais. Tudo isto acaba dando uma sensação incômoda de estar vendo uma novela, e que Rensga Hits! poderia ter pensado em soluções mais originais.
Entretanto, as tramas conservadoras melodramáticas andam lado a lado com certos atrevimentos dentro de uma série que, supostamente, está focando no público consumidor do sertanejo. As histórias paralelas focam em desigualdade salarial entre homens e mulheres, a homofobia neste meio e até no estigma em torno do homem que brocha. Estes enredos são explorados sem comprometer a leveza de Rensga Hits!, o que é ótimo.
Por fim, vale destacar a performance dos atores. Todos estão bem, mas quem brilha mesmo é a cantora Gláucia, defendida de forma muito inspirada por Lorena Comparato, e a sempre competente Fabiana Karla, que parece ter nascido para viver Helena. Outro trunfo é a trilha sonora original, com muitas músicas que grudam na cabeça e podem dar vida à série para além do streaming.
Por tudo isso, vale a pena dar uma chance a Rensga Hits! e mergulhar de cabeça neste fabuloso universo do feminejo.
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