Não sou dada a exageros, tal como este que aparece no título deste texto. Mas o fato é que Reservation Dogs é tão especial que vale a pena usar a hipérbole. A série criada e produzida por Sterling Harjo, ao lado de Taika Waititi (que já trouxe ao mundo outras pérolas como What We Do In The Shadows) é tão original quanto universal, e tão bem escrita quanto comovente, sem jamais resvalar no sentimentalismo barato.
Em duas temporadas, a série conseguiu colocar todos os personagens (que não são poucos) em nossos corações. Para quem não sabe, Reservation Dogs acompanha a vida de quatro adolescentes indígenas que vivem numa reserva em Oklahoma. Todos os atores também são indígenas: Bear (D’Pharaoh Woon-A-Tai), Elora (Devery Jacobs), Willie Jack (Paulina Alexis) e Cheese (Lane Factor) cresceram juntos e se autointitulam como uma gangue, Reservation Dogs (apaixonados por cinema e música, eles brincam com Reservoir Dogs, título original de Cães de Aluguel, de Quentin Tarantino).
Só que os “Rez Dogs” estão destruídos, pois acabaram de passar por uma tragédia: o suicídio do quinto membro do grupo, Daniel (Dalton Cramer). A perda do amigo é a chave que os leva a questionar seus planos e a desestruturar os sonhos do grupo – sendo o principal deles o de ir até a California conhecer o mar.
Em duas temporadas, basicamente o que estamos fazendo é nos enturmar com esses amigos e suas famílias, bem como as pessoas que vivem em seu entorno na reserva. Os adultos que os cercam são, quase todos, bem malucos e engraçados – como o tio Brownie (Gary Farmer), que só pensa em maconha, o policial indígena Big (Zahn McClarnon) e o branquelo Kenny Boy (Kirk Fox) que se acha nativo-americano e comanda um desmanche de carros.
Mas não é só isso. A beleza de Reservation Dogs é que a série vai muito além da comédia. Ela une, sim, piadas juvenis, mas também cultura indígena, sarcasmo em relação à cultura branca (eles só chamam Jesus de “White Jesus”, por exemplo), crítica social e realismo fantástico. Os espíritos ancestrais estão sempre dando as suas caras na reserva, quando soltam frases que às vezes parecem mais maldição (ou simplesmente um chiste) do que um conselho.
Por que ‘Reservation Dogs’ é tão bom?
Em duas temporadas, Reservation Dogs conseguiu constituir um universo específico em torno de quatro adolescentes muito cativantes, mas também muito sedentos pela vida – e cuja ânsia por desbravar o mundo consegue tocar em um lugar especial de todo mundo que um dia já foi jovem e sonhou com isso (ou seja, todos nós).
Há algo a mais aqui: esta não é apenas uma série sobre indígenas, mas sim feita por indígenas – o que muda tudo.
Mas há algo a mais aqui: esta não é apenas uma série sobre indígenas, mas sim feita por indígenas – o que muda tudo. Não se deve esperar uma representação sofrida dessa população, ou fundada numa autocomiseração. Não que a pobreza e o abandono não estejam presentes na história. Mas a ideia aqui é retratar estes personagens pelo lado de dentro de suas vidas, sempre com o tom jocoso que lhes é peculiar.
Outra excelente sacada é que todos os personagens são bem desenvolvidos ao longo das temporadas. É difícil pensar em protagonistas e coadjuvantes, pois a maior parte deles tem tramas bem estruturadas. E há algo interessante na lógica da série: vários episódios são dedicados especificamente a personagens secundários.
Na passagem da primeira para a segunda temporada, deparamo-nos com uma crise: o grupo se desfaz depois que Elora rouba o dinheiro que eles estavam guardando para ir para a California. Ela pega seu carro e foge levando apenas Jackie (Elva Guerra), que pertence a uma “gangue inimiga”. Dá tudo errado, claro, e as meninas precisam voltar com o rabo entre as pernas. A partir daí, os Rez Dogs vão precisar decidir o que vão fazer e como seguirão em frente.
Soma-se a isso os dramas peculiares da passagem da adolescência para a vida adulta. Tudo isto é abordado em episódios belíssimos, daqueles que restam na memória do espectador – como quando uma grande comunidade vela na cama o corpo quase morto da avó de Elora, que está prestes a fazer a sua passagem ao mundo dos espíritos, ou naquele em que Bear aprende a trabalhar em construção (e, de quebra, nos presenteia com um dos roteiros mais incríveis sobre paternidade e masculinidade).
Mas há episódios que são simplesmente alívios cômicos destinados a rir conosco – e da nossa cara. Dentre eles, está aquele que a mãe de Bear, Rita (Sarah Podemski) vai com suas amigas a um congresso de saúde indígena. Na verdade, elas estão apenas interessadas em aproveitar a balada, fisgar alguns pretendentes para a cama e, claro, fazer coreografias ao som de Brandy, que embalava sua adolescência. Mas o passado já não existe mais, e elas acabam descobrindo algumas coisas pelo caminho. É tudo muito constrangedor, mas também profundamente empático.
Embora a segunda temporada tenha sido mais triste que a primeira, ela não deixa dúvidas de que os Rez Dogs estão crescendo, enfrentando seus demônios e, aos poucos, construindo sua autonomia. Para nossa sorte, eles compartilham tudo isso conosco. Tal como ocorria com os clássicos filmes de amigos dos anos 1980 (ao estilo de Conta Comigo, de Rob Reiner) que nos falavam sobre o poder da amizade, é difícil não se sentir parte desta turma e querer saber mais sobre eles.
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