Poucas séries são tão atuais quanto Ruptura, produção da Apple TV+ dirigida por Ben Stiller. Estrelada por Adam Scott (de Parks and Recreations e de papéis menores em várias outras séries), além de contar com um elenco de nomes de peso como John Turturro, Patricia Arquette e Christopher Walker, Ruptura já captura o espectador por conta da estranheza da sua história: ela propõe imaginar uma empresa em que todos os funcionários passam por uma ruptura entre a sua “vida real” e a vida dentro de empresa.
Concretiza-se, assim, uma espécie de ideal capitalista: funcionários sem história, que topam cumprir suas tarefas de maneira otimizada, sem se preocupar com seus problemas, tais como autômatos. Ruptura, portanto, habita o terreno da ficção científica – e, ao fazer jus a este gênero, faz-nos pensar sobre as coincidências da trama com o que enfrentamos hoje.
Ou seja, Ruptura nasce, não por acaso, neste momento histórico peculiar: talvez nunca tenhamos questionado tanto as relações trabalhistas como agora. Se outrora aceitava-se sem grandes questionamentos que a vida envolvia trabalhar, buscar estabilidade e por fim obter a aposentadoria, hoje há vários movimentos que questionam, inclusive, a necessidade do trabalho, ou pelo menos das jornadas trabalhistas tais como foram estabelecidas.
Ruptura, portanto, é um convite importante para pensarmos em nossa própria trajetória. Neste texto, listamos 4 questionamentos que a série da Apple Tv pode inspirar.
1. Nós somos o nosso trabalho?
A trama de Ruptura transcorre dentro de uma empresa chamada Lumon Industries, cujo ramo de atuação nunca fica muito claro. Mas a proposta inovadora – ou, para usar o jargão dos negócios, disruptiva – da Lemon é de conseguir criar uma versão independente do self enquanto o funcionário está dentro da empresa. Esses sujeitos internos são chamados de innies, e eles não sabem de nada sobre os outies, ou seja, as versões “reais” deles fora do ambiente de trabalho.
Em Ruptura, concretiza-se uma espécie de ideal capitalista: funcionários sem história, que topam cumprir suas tarefas de maneira otimizada, sem se preocupar com seus problemas, tais como autômatos.
Esta cisão, claro, gera vários conflitos que vão alimentar a história da série. Mas ao propor que haja duas versões de um mesmo sujeito, uma profissional e uma pessoal, inspira-se uma discussão interessante, que é o quanto nos reconhecemos a partir de nossa profissão.
É muito comum que a pergunta de “quem é você?” receba como primeira resposta a indicação de uma profissão. Quem não tem uma, portanto, parece menos que um indivíduo.
A ideia de Ruptura é radical, e nos apresenta pessoas que trabalham mas sabem quase nada sobre o seu trabalho – fazendo com que precisem procurar outros temas em comum para poderem criar conexão entre si.
2. Existe prazer no trabalho?
No ambiente fechado da Lumen, os trabalhadores precisam ser inspirados para continuar produzindo – embora eles não saibam exatamente o que estão fazendo. Por conta disso, a empresa cria alguns mecanismos, quase todos ridículos, para compensar os funcionários.
Entram aí presentinhos ocasionais, festas aleatórias (como as hilárias “festa do ovo” e “festa da melancia”) e reconhecimentos de performance que beiram o ofensivo. Mas a grande questão suscitada aqui é: para que servem esses “bônus” que não acomodar os funcionários dentro dos próprios trabalhos, sem que haja questionamento?
Em Ruptura, os profissionais desajustados à empresa são mandados para uma espécie de “castigo” em uma chamada sala de relaxamento em que recebem um treinamento para voltar ao prumo. O objetivo, claro, é adequar o funcionário à empresa, mesmo que isso signifique desalinhar-se com seus próprios valores. Claramente, vai ficando nítido de que a recompensa do trabalho pelo trabalho não é suficiente.
3. A autoajuda pode salvar alguém?
Os funcionários da Lumen vivem uma espécie de isolamento voluntário – afinal, eles optaram livremente por trabalhar nesta empresa, motivados por razões diversas. Mas aos poucos começam a notar que as vantagens deste trabalho são menores do que parecem.
Assim, alguns passam a rebelar-se, dentro das ferramentas que têm em mãos, que não são muitas. Só que, por conta das características do seu trabalho, elas não têm muitas informações sobre o que há de muito melhor do que a sua realidade.
Mas logo cai nas mãos dos funcionários, de forma clandestina, um livro de autoajuda que, lido superficialmente, é apenas uma coleção de bobagens. Mas só aparentemente. Dentro do seu contexto de alienação, alguns trabalhadores passam a consumir trechos daquela obra como grande inspiração, tal como se fossem cristãos que encontraram pela primeira vez uma bíblia. E a partir dali, mudanças em suas vidas podem começar a acontecer.
4. O trabalho é como a religião?
Um dos aspectos mais incômodos de Ruptura é ver o quanto a Lumen é construída sob ares de religião. Os fundadores da empresa são cultuados dentro da estrutura e os funcionários passam a ser coagidos a louvar estes pequenos deuses, que concederam a eles uma graça: um emprego.
A associação com os tantos ambientes corporativos que existem é bastante óbvia, já que, num mundo capitalista, perder o trabalho equivale quase à morte. Assim, milhares de pessoas curvam-se a uma “religião” por medo das consequências da perda desse sustento, prestando reverência a empregadores em quem não acreditam, como se estes fossem deuses benevolentes que os aceitam em seu “reino”. Qualquer um que habite o LinkedIn sabe que esta postura “gratiluz” se tornou quase uma obrigação para a sobrevivência em várias empresas.
Profundamente atual, não é de se estranhar que Ruptura tenha angariado tantos fãs e levantado discussões em vários lugares. Vale acompanhar se ela gerará repercussão dentro das próprias empresas.
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