Se você já se perguntou como seriam marinheiros famintos, enfraquecidos pelo escorbuto e desgastados após meses no mar, Xógum – A Gloriosa Saga do Japão não deixará dúvidas. A produção, vencedora de 18 Emmy (um recorde), entre eles os de melhor série dramática e direção, começa de maneira impactante e crua, transportando o espectador para o Japão de 1600, onde o país está à beira de uma guerra civil.
A adaptação do clássico romance de James Clavell, publicado em 1975, é realizada com uma ambição impressionante e um respeito profundo pelo material original. Considerando que o livro tem mais de mil páginas, é notável como a trama foi habilmente condensada em apenas dez episódios. O resultado é uma obra visualmente magnífica e profundamente envolvente – vale dizer aqui que já foram confirmadas mais duas temporadas, portanto a narrativa irá se expandir.
No centro da história está John Blackthorne, interpretado pelo britânico Cosmo Jarvis, um oficial inglês que se encontra a bordo do navio Scurvy – que, na verdade, é o navio holandês Erasmus. Ele e sua tripulação encalham nas misteriosas costas do Japão, um lugar sobre o qual muitos marinheiros europeus apenas ouviram rumores. Ao desembarcarem, se deparam com um conflito envolvendo os portugueses, que há muito mantinham a localização do Japão em segredo para assegurar seu monopólio comercial.
Além da violência, Xógum não tem medo de explorar grandes temas, como as intrincadas relações entre religião e comércio.
Os sobreviventes do naufrágio chegam em um momento crucial da história japonesa: o taiko, governante supremo, morre, deixando um jovem herdeiro ainda incapaz de governar. Enquanto isso, cinco senhores guerreiros formam um conselho de regentes, governando interinamente, mas suas rivalidades e tensões internas ameaçam transformar o país em um campo de batalha.
Um dos protagonistas deste cenário tenso é Toranaga, interpretado de forma magistral por Hiroyuki Sanada, vencedor do Emmy de melhor ator. Toranaga, um herói de guerra conhecido por sua habilidade estratégica, é visto como o mais apto a assumir o controle supremo do Japão, algo que o torna alvo de desconfiança e ressentimento entre seus pares. Enquanto o país está à beira do colapso, ele é advertido de que “este não é um tempo para homens bons, mas sim para um xógum“, um líder militar autoritário. Toranaga, contudo, se mostra relutante diante do peso brutal desse título, embora seja claro que ele eventualmente caminhará nessa direção. De maneira astuta, ele enxerga a chegada inesperada de Blackthorne como uma oportunidade para avançar seus interesses políticos e militares, e começa a manobrar a situação em benefício próprio.
Blackthorne, por sua vez, é uma figura contraditória e fascinante. Conhecido como “o Bárbaro” pelos japoneses, ou Anjin, o piloto, ele é admirado por suas habilidades excepcionais de navegação. No entanto, sua chegada gera desconforto, e ele se vê constantemente dividido entre o fascínio e a frustração ao tentar entender e se adaptar às normas e tradições de uma terra completamente diferente da sua. A série faz questão de destacar que essa estranheza é mútua: para os japoneses, Anjin é uma figura repulsiva e enigmática, uma representação de tudo o que é estrangeiro e selvagem.
‘Xógum’: violência e caos
A atmosfera de Xógum é permeada pela brutalidade de seu mundo. A série não poupa detalhes ao retratar a violência crua da época. Desde decapitações rápidas e implacáveis até cenas perturbadoras, como a execução de um homem fervido lentamente até a morte, um “método especial” adotado por um senhor da guerra sádico, tudo é mostrado de forma gráfica e direta. Da mesma forma, os efeitos do escorbuto sobre os marinheiros são retratados com uma crueza desconcertante. As batalhas, belamente coreografadas, irrompem em meio ao diálogo, como faíscas de violência e caos. Há assassinatos, e um ato de seppuku particularmente angustiante – o ritual de suicídio japonês –, que desencadeia consequências políticas e sociais de longo alcance.
Além da violência, Xógum não tem medo de explorar grandes temas, como as intrincadas relações entre religião e comércio. A presença dos portugueses e espanhóis no Japão introduz um conflito entre o catolicismo e o comércio, destacando as linhas turvas entre fé e poder econômico. O personagem de Blackthorne, visto como um herege ao pisotear a cruz de um padre católico, simboliza as tensões religiosas que permeiam o enredo. Mas a série também aborda questões de diplomacia, política e, eventualmente, amor – embora o romance fique em segundo plano nos primeiros episódios, deixando espaço para a brutalidade e a complexidade das intrigas militares e políticas dominarem. A neozelandesa de origem japonesa Anna Sawai, vencedora do Emmy de melhor atriz, brilha como a complexa Mariko, uma mulher dividida entre duas culturas.
Xógum é um drama profundo, que demanda total atenção do espectador. Em grande parte falado em japonês, com alguns diálogos em inglês substituindo o português, a série não subestima sua audiência. Ao contrário, exige que o público se sente e se concentre, sem distrações.
A série foi cuidadosamente elaborada para ser visualmente espetacular, com escolhas inteligentes que preservam a complexidade da narrativa. Diferente do que poderia ter sido uma abordagem mais simplificada, como realizar toda a série em inglês, Xógum respeita as nuances linguísticas e culturais da história, resultando em uma obra rica e sofisticada. O ritmo ponderado e a confiança da produção proporcionam uma experiência televisiva imersiva, que é tanto esteticamente deslumbrante quanto narrativamente instigante.
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