Depois de 5 anos, o mundo assiste, finalmente, a uma nova edição dos Jogos Olímpicos. Se normalmente este é um momento especialíssimo para a televisão, em 2021 ela consegue ser ainda mais marcante – afinal, vivemos momentos difíceis, em que todo tipo de alegria e emoção positiva será bem-vinda.
As Olimpíadas de Tóquio, portanto, acontecem com funções específicas: a de fortalecer uma sensação de pertencimento a um país (no nosso caso, sentimento enfraquecido para boa parte da população nos últimos anos) e a de nos apontar um futuro melhor que seja possível.
Mas estes não são os únicos aspectos importantes aqui. Nestes Jogos Olímpicos em Tóquio, sem plateia presencial, há vários fatores que devem deixá-los marcados na memória não só da audiência, mas da própria televisão. Eles vão desde a inclusão de novos esportes nas Olimpíadas (como o skate e o surf) à múltipla gama de comentaristas que foram trazidos para debater as competições com os jornalistas. Muito deles, inclusive, são jovens, como Karen Jonz, que trazem não apenas a informação, mas a própria cultura daquele esporte.
Neste texto, pretendo destacar um elemento em específico que considero fundamental nestas Olimpíadas, que é a abertura para uma discussão que dificilmente entra em pauta: a saúde mental dos atletas. O mote para isso, claro, é a desistência da atleta norte-americana Simone Biles, uma das grandes estrelas da ginástica, como uma decisão para priorizar a sua saúde mental. O assunto foi muito repercutido pela imprensa, gerando debates importantes que são atípicos ao jornalismo esportivo, especialmente no que envolve atletas de alto rendimento.
As pontuações com maior perspicácia, na minha visão, foram as da ex-atleta da ginástica Daiane dos Santos, comentarista da Globo para este esporte. Daiane é uma destas atletas raras que, além do talento esportivo em si, tem um incrível poder de comunicação, fazendo análises precisas e expondo-as de forma muito clara à audiência.
Nesta entrevista concedida para a Globo News, ela traz as seguintes considerações sobre a desistência de Simone Biles: “ela vem mostrar um outro fator de superação para as pessoas. Ela teve que passar acima do próprio ego, de campeã olímpica e de tudo que ela representa, para mostrar a fraqueza dela, que é a sua fortaleza. É um ato de coragem de mostrar que está sensível e vulnerável, que qualquer pessoa pode estar estar, no esporte ou fora dele”.
Daiane continua sua fala, complexificando o caso para a questão racial: “Como mulher negra, uma coisa que a gente aprende quando pequena é que a gente tem que ser três vezes melhor. É uma pressão que de alguma forma quer te oprimir e fazer que você não siga em frente. Você precisa ser muito forte. A gente imaginou que esses Jogos Olímpicos seriam da tecnologia, mas na verdade, eles são da reconstrução humana, de você voltar lá atrás e entender o ser humano”.
Há muitas e muitas camadas nesse debate, e Daiane dos Santos é feliz a apontar a cada uma delas. Há a questão do feminino: da dificuldade adicional de suceder (seja quais forem os parâmetros usados para medir “sucesso”) sendo mulher. Há a questão racial: ser negro e, no caso aqui, ser mulher negra, com as camadas de cobrança, externa e interna, que passam a se acumular. Há a questão do ego: do peso em torno da responsabilidade (ilusória?) de representar um país inteiro. E há, por fim, a questão esportiva, à ideia de superação de limites (vale ofertar a própria vida para superar limites?).
O discurso do esporte, como sabemos, seduz a todos porque não fala do esporte si – pelo menos, não apenas sobre ele.
O discurso do esporte, como sabemos, seduz a todos porque não fala do esporte si – pelo menos, não apenas sobre ele. O produto ofertado nestas narrativas é assimilado porque pode ser transferido para outras áreas: a lógica do sacrifício, da perda para ganhar algo importante lá no fim. Não por acaso, as notícias em torno de Simone Biles geraram vários comentários nos portais jornalísticos de gente apontando a “geração mimimi”, que não aguenta nada, etc.
Experiências de atletas como Simone Biles, Daiane dos Santos e de tantos outros que conheceram o “fracasso” – seja a perda de uma competição, seja a desistência – vem à luz com respeito, agora, talvez pela primeira vez. Ao optar por não ser a primeira do mundo, Simone Biles vai de encontro com muitos discursos não exatamente novos, mas vigentes hoje, do “morrer pela pátria”, de ser um “soldado”.
Vale lembrar que o Advogado Geral da União e ex-ministro da Justiça André Mendonça, ao defender a abertura de igrejas durante a pandemia, pronunciou que “os verdadeiros cristãos não estão dispostos jamais a matar por sua fé, mas estão sempre dispostos a morrer para garantir a liberdade de religião e de culto” (tristemente, a vida disposta a ser perdida é sempre a dos mais pobres, os que não podem se proteger).
Ao priorizar a própria vida frente ao triunfo de um país, Simone Biles presta um importante serviço a todas as vítimas de um discurso do coach que elogia o sacrifício e o esforço desmedido como o único valor possível, acima de qualquer outra coisa. E é de se louvar que a TV tenha acompanhando esse movimento com muita coragem e sobriedade.