Semana passada, escrevi minhas primeiras impressões sobre a temporada 20 do reality show Big Brother Brasil, deixando a seguinte indagação: a inserção, pela primeira vez, de “famosos” no grupo é uma boa jogada, uma vez que estas pessoas são experts da performance em público? Se eu coloco na casa indivíduos cuja profissão é controlar cada um de seus passos (e poses), isso não estraga parte do entretenimento do programa – que é, justamente, conseguir capturar os poucos momentos em que os participantes esquecem das câmeras e passam a ser “eles mesmos”?
Passados mais alguns dias, pode-se dizer que a estratégia da Globo tem se revelado bem-sucedida. Já há uns bons anos, o BBB não construía uma trama – bastante simples, é bom dizer – capaz de engajar uma audiência massiva para dentro da história, estabelecendo o tipo de relação mais desejado para um reality show desse estilo: a sensação de que, de fato, estamos ditando os rumos do jogo e agindo como titereiros que manipulam estes incautos marionetes para que sigam os nossos desejos.
Explico melhor. A trama atual do BBB 20, como muitos sabem (mesmo sem assistir ao programa), tem girado em torno de uma dualidade moral entre homens e mulheres. Um grupo de homens na casa (perfeitos exemplares do que hoje se chama de “masculinidade tóxica”) juntou-se e engendrou uma espécie de “golpe machista” contra as mulheres. A ideia – megalomaníaca e pouco inteligente – era tentar seduzir as moças comprometidas para que elas ficassem mal vistas pelo público votante e, aos poucos, fossem eliminadas.
O plano rocambolesco, é claro, não deu certo. Mas a partir daí, em uma jogada de mestre, a produção do programa passou a aproveitar esta bola que quicava na sua frente para criar um entretenimento extremamente eficiente. Uma das estratégias foi reativar a chamada “casa de vidro”, um zoológico humano em que quatro aspirantes ao programa passam alguns dias em um shopping e são “visitados” por turistas que vão lá, ver como vivem seres humanos que vendem sua privacidade em prol de uma possível vaga no BBB. E aí algo completamente favorável passou a acontecer: os transeuntes começaram a visitar os confinados carregando cartazes com dicas sobre as impressões da opinião pública (manifestas, sobretudo, no Twitter), do tipo “A Marcela está certa” (a indicação, portanto, de que a participante Marcela, que havia denunciado o “plano da sedução”, estava sendo bem vista pelo público).
Ao entrarem na mansão do BBB, os novos brothers carregaram os recados para os colegas e quebraram uma das premissas fundamentais do formato: a não-contaminação entre o mundo externo e a bolha criada pela casa. A ideia essencial do Big Brother é justamente a de criar um habitat isolado no qual uma vida decorre, possibilitando que nós, os “deuses” aqui fora, consigamos observá-la e tirar as nossas conclusões sem que as cobaias saibam se estão nos agradando ou não. É, de fato, um interessantíssimo experimento sociológico, que testa os valores sociais mais autênticos, à medida em que as pessoas agem sem ter um retorno direto de suas ações. Empresto aqui a definição muito precisa dada pelo crítico Henrique Haddefinir: “há muitos anos que o programa tem servido como um espelho do que é a vida quando não estamos vivendo-a e sim observando-a. (…). Somos, todos os dias, um grande processo de edições constantes e mesmo que brademos ‘eu sou eu mesmo o tempo todo’, reside na declaração a maior mentira da nossa existência. Se fôssemos nós mesmos o tempo inteiro jamais seríamos capazes de viver em sociedade”.
A presença de pessoas famosas potencializa o nosso controle sobre a edição, já que tais pessoas têm absoluta convicção sobre sua reputação e o que elas representam no mundo aqui fora.
Em suma, diria que esta edição 20 tem rompido alguns de seus contratos com o público e atingido bons resultados. A entrada de influenciadores digitais – “as pessoas mais editadas do mundo”, parafraseando Haddefinir – tem trazido um adicional de entretenimento a um programa que parecia ter já testado tudo. A presença de pessoas famosas potencializa as possibilidades do nosso controle sobre a edição, já que tais pessoas têm absoluta convicção sobre sua reputação e o que elas representam no mundo aqui fora. Cabe a nós, o público, revelar que elas têm menos poder sobre suas imagens do que acreditam.
Um exemplo claríssimo disso foi a saída do atleta Petrix, que várias vezes havia dito aos colegas de confinamento que jamais sairia por já ter contribuído muito ao esporte olímpico do país (e, possivelmente, por ter sido porta-voz de um abuso sexual sofrido por ele e outros atletas por um treinador). Não contava que a edição dada ao BBB 20 o havia configurado como o grande vilão da casa, acusado de tramar os planos e de cometer abusos contra mulheres. Quando foi eliminado da edição, as caras de espanto (dele e de todos os demais participantes) regozijaram nós, o público, que aqui atua como um deus onisciente que manipula seus personagens sem que eles saibam. Touché.
Bastante envolvente, a edição 20 de Big Brother Brasil tem me feito lembrar de um texto clássico do linguista russo Mikhail Bakhtin, dedicado completamente à obra de outro autor russo, Fiódor Dostoiévski. O linguista considerava o escritor como o mais completo de sua geração por sua capacidade de criar personagens autônomas, que falavam sozinhas e fugiam do controle de seu “deus” (ou seja, o autor que os concebeu e possibilita que elas existam). Com o risco de ser acusada de heresia, ouso aqui dizer que BBB 20 tem nos conquistado justamente por nos fazer sentir, tal como Dostoiévski, autores de uma obra complexa em que os personagens se rebelam contra nós o tempo todo. Eles até podem achar que mandam, que seduzem, que são divertidos ou cativantes, mas no fim das contas, quem manda neles somos nós.