Recentemente, ao tecer uma análise sobre a segunda temporada de The White Lotus, no podcast Meu Inconsciente Coletivo, a psicanalista Fabiana Secches sugeriu uma reflexão interessante sobre as diferenças entre o bingewatching (o ato de “maratonar” uma série, assistindo a tudo em uma sentada) e o de receber um episódio por semana. O segundo tipo de consumo, ao menos em teoria, nos dá tempo de digerir uma narrativa com calma e, por fim, fruir de mais sabores e nuances que ela carrega.
Sem dúvida, Succession teve muita repercussão e muito sucesso entre a crítica por não ser uma série que favorecia o bingewatching. Quer dizer: obviamente era possível assistir às temporadas de uma vez só. Mas quem se aventurasse por essa experiência rápida certamente saía frustrado e sem entender por que tanta gente se apaixonou por essa trama.
Afinal, a história dos Roy não era exatamente uma trama divertida, muito menos simples. Desde o primeiro episódio, fomos convidados a mergulhar na tensão inerente que amarrava todos os membros dessa família de bilionários cuja relação estabelecida entre eles parecia tudo menos saudável. Na superfície, os irmãos Roy se tratavam por apelidos e chamavam o pai de “dad”. Mas os laços estabelecidos entre eles e com as pessoas em seu entorno pareciam sustentados apenas por interesses de todo tipo. Amor, em Succcession, tinha a ver com transações e nunca com doação.
Encerrada em sua quarta temporada, o esperado último episódio de Succession tem sido decodificado nas redes sociais como um final que fez jus ao que se esperava da série de Jesse Armstrong. Há múltiplas interpretações, muitas decepções e uma boa camada de afeto, como não poderia deixar de ser. Afinal, essa não é uma família qualquer, mas os bilionários Roy, e qualquer encontro deles é sempre uma “festa de escorpiões”, como bem pontua Roman no episódio final.
Um encerramento inconclusivo

(Atenção: a partir daqui, trago alguns spoilers sobre o episódio final).
Succession, como bem destacou a jornalista Isabela Boscov, tirou seu brilhantismo em uma certa subversão do ritmo acelerado das séries atuais, formatadas para competir entre si e fazer com que o público fique preso a elas até o final. Não havia exatamente cliffhangers que amarrassem o espectador em Succession. Mesmo na última temporada, muitos episódios pareciam, à primeira vista, enfadonhos.
Succession nos contemplou com um desdobramento que parece nos gritar: tal como um disco riscado, não conseguimos parar de repetir os nossos próprios erros.
E aí, numa virada surpreendente, Jesse Armstrong pegou os fãs no susto ao nos entregar, logo nos primeiros capítulos da quarta temporada, o ápice da história: a anunciada morte de Logan Roy (Brian Cox), o nefasto patriarca em torno do qual tudo orbita. A morte de Logan deu margem ao texto mais interessante desde então: verificar o quanto cada um de seus quatro filhos seguiria o destino que foi traçado a eles pelo próprio pai, a partir de uma vida de tratamento abusivo (ao estilo dos ricos, claro) e de falta de suporte emocional.
Ainda assim, o episódio final nos trouxe alguns relances de luz. Pudemos assistir a momentos de pura beleza e leveza, em que os irmãos parecem reviver algo que foi perdido já na infância, nos poucos momentos que devem ter tido de pura comunhão. Isso ocorre na já célebre cena da cozinha, em que Shiv (Sarah Snook) e Roman (Kieran Culkin) preparam uma gororoba que irá coroar o irmão Kendall (Jeremy Strong) finalmente como o rei da Waystar Royco, cargo que ele sente ter sido prometido para ele quando tinha sete anos. Estão ali como crianças, revivendo os poucos momentos de genuína conexão que já tiveram.
Contudo, para os Roy, a infelicidade parece sempre ser o destino. Se, com a morte do pai, eles regressam à infância, isso não ocorre apenas na parte positiva, mas também na infantilidade que se torna latente entre sujeitos que, supostamente, irão comandar uma das empresas mais poderosas do mundo. Não por acaso, no embate final entre os irmãos, a briga deles é em cima de tapas e socos e de argumentos rasos do tipo “você não tem filhos” ou no infame “você matou alguém”.
Nesse sentido, Succession, ao seguir o roteiro delineado desde o primeiro episódio, nos contemplou com um desdobramento que parece nos gritar: tal como um disco riscado, não conseguimos parar de repetir os nossos próprios erros. Fica subentendido que Shiv, Kendall e Roman seguirão suas vidas pela jornada de fracasso que seu pai (e sua mãe, pela total ausência) desenhou a eles.
Um texto antimelodramático?

Os episódios de Succession foram marcados quase sempre pela tensão inerente que ocorria a cada encontro dos membros dessa familia quebrada, que desejam algo pelo ato em si de querer, pois não há nada mais a desejar. Essa tensão permanecia à flor da pele, sem explodir em reações de raiva na cara dos atores – quase tudo vinha à tona em textos contidos em que a ruptura era apenas eventual.
Em certo sentido, podemos pensar que Jesse Armstrong construiu uma espécie de “antimelodrama”, pois os sentimentos de todos precisavam ser cavoucados das expressões dos competentes atores. Obviamente, as emoções dos personagens escapam a quem assistia (o Tom Wambsgans de Matthew Macfadyen talvez fosse o mais explícito nesse sentido), mas esse não foi um show de sentimentos óbvios. Era preciso dominar minimamente um léxico sobre a psique humana para poder fazer uma leitura interessante de Succession.
Se nós, os fãs, vamos sentir falta dos filhos quebrados e emocionalmente atrofiados de Logan Roy, é porque eles carregavam muitos de nós em si, e geralmente aquilo que preferimos não ver. E talvez seja isso que faça uma boa série nos dias de hoje.
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