Muito se discutiu já sobre o “poder” dos meios de comunicação e o quanto eles conseguem fazer com que certos assuntos penetrem na sociedade. Quem se arrisca a analisar esta questão acaba, fatalmente, caindo num paradoxo insolúvel do “quem veio antes, o ovo ou a galinha?”. Em outros termos: é bastante provável que as nossas mídias pautem o mundo social na mesma medida que são pautadas por ele, num processo contínuo e difícil de ser mensurado com precisão.
Dentre os assuntos que permeiam a vida social, poucos têm sido tão efervescentes nos últimos anos como a questão da mulher. Por consequência, ela se torna uma pauta incessante também da mídia. Incluem-se aí todas as variações possíveis deste tema, como o feminismo, a igualdade entre os gêneros, as imposições estéticas da mídia – enfim, tudo o que pode ser englobado em um grande guarda-chuva chamado empoderamento feminino. E se há dúvidas de que este assunto já está introjetado dentro da TV, basta um olhar mais específico para os nossos programas.
Não há dúvidas de que uma temática está bem assimilada pela mídia quando ela passa a adentrar lugares que, a princípio, não seriam propícios a ela. Um exemplo disso é o programa Superbonita, no ar no canal a cabo GNT desde 2000. Há 17 anos, o programa configura uma espécie de reduto das telespectadoras do canal para se informarem sobre tratamentos estéticos e debates sobre vários assuntos relacionados à vaidade. Poderia-se dizer, portanto, que um olhar mais apressado poderia categorizar o Superbonita como um programa “desempoderado”, uma vez que nele as mulheres falam sobre as futilidades da estética – algo que, historicamente, foi considerado algo menor, superficial e típico das mulheres.
No entanto, a agenda do feminismo já está tão assentada que se inseriu, inclusive, nos programas de estética, tal qual o Superbonita. O programa, que já foi encabeçado por várias mulheres entendidas como belas dentro de um compartilhado padrão estético (dentre elas, Luana Piovani, Ivete Sangalo, Taís Araújo e Grazi Massafera), passou a ser capitaneado, em 2017, pela rapper curitibana Karol Conka. A partir de então, o tom do Superbonita foi reconfigurado e readequado à forte imagem desta artista – que, mais do que chegar ao mundo por meio da música, é em si mesma uma mensagem.
A mensagem do atual Superbonita é: todas as mulheres são lindas e livres, não importa quais as escolhas que elas façam. Se quiserem rejeitar todos os padrões de beleza ou ser escravas de todos eles, tanto faz.
Para reconhecermos a força e a penetrabilidade desta mensagem que Karol Conka carrega, basta dizer que hoje ela está em tudo: desde a abertura da Malhação – Viva a Diferença (a letra de “Bate a poeira”, que abre a novelinha, reitera o seu discurso: “gorda, preta, loira, o que tiver que ser, magra, doida, santa, somos a força e o poder”), catálogos da Avon, até a propaganda para vender pacote de internet de operadora telefônica. Podemos dizer que, junto com Karol Conka, o empoderamento entrou na moda.
Constatando isso, fica mais plausível entender que mesmo o Superbonita precise se adequar a esta forte mensagem que circula e da qual ninguém mais pode escapar – nem mesmo as “superbonitas”, as mulheres que sempre se encaixaram nos chamados padrões estéticos e tiraram vantagens dele, tal como as modelos, as celebridades, as estrelas da música e, mais recentemente, as blogueiras, as youtubers, as digital influencers. Mesmo quem sonhou ser Gisele Bündchen hoje, ao menos no discurso, quer também ser Karol Conka.
Por consequência, o Superbonita passou por uma reformulação profunda em 2017. Basta observarmos que os próprios temas do programa, antes voltados aos “problemas” estéticos das mulheres (como estrias, celulites, maquiagem, plástica, regime), agora contemplam episódios como “meu estilo é que difere”, “azamigaloka” e “meu poder é black”. Fiel à própria mensagem, Karol Conka recepciona suas convidadas dentro uma espécie de estúdio abandonado que traz um tom underground normalmente associado ao mundo do rap, de onde ela surge.
A mensagem do atual Superbonita é: todas as mulheres são lindas e livres, não importa quais as escolhas que elas façam. Se quiserem rejeitar todos os padrões de beleza ou ser escravas de todos eles, tanto faz. É um discurso, no entanto, difícil de ser sustentado, pois parece um tanto paradoxal. Se lutamos contra todas estas amarras, as mulheres que optam (livremente) por eles estão indo contra nós? Quando Anitta e Ludmilla aparecem dizendo que, aos 20 e poucos anos, já fizeram várias plásticas, que não gostavam de seus narizes, elas proferem mensagens de empoderamento ou conspiram para enclausurar as mulheres nos padrões habituais?
No caso dos episódios do Superbonita, esta espécie de confusão é nítida. Com talento e jogo de cintura, Karol Conka consegue conversar da mesma forma com as artistas globais e as trans, e isto é um trunfo do programa. Aliás, as próprias estrelas mainstream parecem aqui mais desencaixadas do discurso de Karol. Por mais “tradicionais” que sejam, elas parecem meio forçadas a dizer que já sonharam em cortar o cabelo, em abrir mão dos regimes, em radicalizar esteticamente – por mais que nunca o façam.
Sendo assim, é louvável o novo formato consolidado na atual fase do Superbonita, possibilitando que as espectadoras do GNT tenham contato com figuras muito mais interessantes e complexas que nas temporadas anteriores, como MC Linn da Quebrada, Jaloo e Valeska Popozuda. São vozes outras sobre a beleza e que, agora, trazem representatividade a tantos e tantas que ficavam presos na teia da obscuridade midiática.
Por outro lado, há um certo estranhamento sobre os usos que são feitas dessas vozes. É como se tivéssemos sonhado por anos que o underground fosse ouvido e agora, depois de muita reivindicação, ele virou mainstream. E o que isso significa? Quando Karol Conka, uma figura de resistência aos padrões, torna-se ela mesma o padrão (e mesmo garota propaganda para vender pacote de dados de internet), esta é uma conquista para nós, mulheres – ou outra vez a estética da subversão foi apropriada pelas mídias para seus próprios interesses?