Quando a artista Mary Cagnin publicou em seu perfil no Twitter uma acusação de suposto plágio cometido por Baran bo Odar e Johnny Frisian, criadores do mega sucesso Dark, em 1899, ela não sabia que levantaria, também, um debate urgente.
Muitos perfis de influenciadores começaram a publicar threads afirmando que não se tratava de plágio, especialmente apontando que não haviam encontrado semelhanças concretas entre as obras.
Chamava a atenção que as postagens não eram feitas por especialistas em direitos autorais ou propriedade intelectual, além do fato de que muitos influenciadores haviam feito publicidade recente para a Netflix.
Para entender o caso, Escotilha foi ouvir Miguel Mendes, advogado especialista em direitos autorais e propriedade intelectual. Em seu perfil no Twitter, Mendes fez um fio em que explicava alguns tópicos importantes. “É bem difícil partir de uma mesma ideia e histórias se tocarem tanto”, afirmou.
O advogado indica que é muito pouco provável que haja coincidências em se tratando de uma questão de direitos autorais. Mendes fez alguns apontamentos, com foco nas manifestações dos influenciadores. “Não adianta querer falar de tropos ou elementos do gênero, a forma que foram utilizados é que é relevante”, disse.
Tropo, na ficção, diz respeito a como um elemento, ou cenas, são recorrentes em narrativas de um gênero ou tipo de expressão artística, como a literatura e a TV. Este é um dos pontos-chave da reclamação de Mary Cagnin.
“Um arco de personagem pode ou não ser plágio, mas o que use a mesma identidade visual e pontos de enredo, provavelmente é.”
“Inspirações (ainda que não demandem citação) não são cópias substanciais, especialmente de um trabalho curto. Referência também não é cópia e demanda crédito”, publicou o advogado. “Temos muitas semelhanças, e elas não são referentes a tropos do gênero” finalizava.
Outros argumentos levantados por quem se posicionou favorável à gigante do streaming, como a cultura livre (visão que se baseia na liberdade de distribuir e modificar trabalhos e obras criativas de forma livre) e cultura do remix (termo associado à Teoria da Comunicação, sobre como a sociedade é acostumada a compartilhar, transformar e editar obras protegidas por direto autoral) também foram refutadas por Miguel Mendes. “Não são desculpa para você simplesmente pegar algo sem permissão e usar”.
O advogado explica que há dois aspectos legais que protegem obras criativas: o direito do autor e o direito de cópia. “A principal diferença entre eles é de onde partem, mas ambos se confundem em alguns pontos”, afirma. “O autor é o primeiro a ter direito de cópia, e ele pode ceder se assim quiser. Também pode oferecer sua obra para apreciação gratuita, como é o caso de Black Silence. A quadrinista tem direitos autorais e de cópia da obra”, explica Mendes. “Esses direitos não protegem ideias, mas protegem a produção artística. Um arco de personagem pode ou não ser plágio, mas o que use a mesma identidade visual e pontos de enredo, provavelmente é”.
Possíveis passos

Sobre as possibilidades que Mary Cagnin têm nesse momento, o especialista Miguel Mendes alerta que o primeiro passo é encontrar um bom advogado na área de direitos autorais, de modo a preparar uma estratégia. “Não é necessário, ou mesmo comum, que esse tipo de coisa chegue até o final de um processo. É possível que um acordo ocorra antes mesmo da primeira petição ser protocolada”.
Mendes explica que o Brasil e a Alemanha são signatários da Convenção de Berna, que estabeleceu o reconhecimento do direito de autor entre nações, além de serem países com legislação baseada neste sentido. “Se houver confirmação do plágio, isso provavelmente virá apenas depois de um longo procedimento judicial. Por isso, o mais provável é que termine em um acordo”, acredita Mendes.
Neste caso, Cagnin poderia ser acrescentada ao rol de autores, ou mesmo creditada como responsável pela “ideia original”. “Além disso, uma participação nos royalties em porcentagem que fica acertada entre as partes ou, sendo o caso de um julgamento chegando ao fim, definida pelo juiz do caso”, finaliza.
Como os criadores são alemães, o especialista defende que o ideal para a criadora de Black Silence é procurar seus direitos onde estão os infratores. “Mas isso não é obrigatório. A ação pode ocorrer tranquilamente no Brasil. O problema seria citar e, posteriormente, executar em relação aos autores alemães”, analisa.
Sobre o fato de ter distribuído sua obra gratuitamente, Miguel Mendes afirma não descaracterizar suposto crime cometido pelos criadores de 1899. “Você entregar uma obra, de graça ou mediante pagamento, é um direito do autor. Porém, você obter uma cópia, ou mesmo o original, de uma obra, não te entrega junto o direito de usá-la”, contextualiza. “No nosso ordenamento, isso é inclusive posto textualmente no artigo 37 da Lei dos Direitos Autorais (LDA). Não conheço qualquer país, inclusive os signatários da Convenção de Berna, que pense em sentido contrário”.
Cobertura da imprensa ajudou a provar plágio contra Jorge Ben Jor
Não é a primeira vez que produtores ou artistas internacionais são acusados de, supostamente, terem cometido plágio. Um dos casos mais famosos ocorreu entre Jorge Ben Jor e o inglês Rod Stewart.
Em 1978, Stewart lançou seu maior hit, “Do Ya Think I’m Sexy”, presente no disco Blondes Have More Fun. Com direito a uma reportagem no Fantástico, da TV Globo, e ampla cobertura nacional, Ben Jor conseguiu provar que a faixa era um plágio de “Taj Mahal”, canção do brasileiro lançada em 1972 no disco Ben, e reeditada em África Brasil, de 1976.
“O que geralmente ocorre, e foi o que ocorreu no caso do Jorge com ‘Da Ya Think I’m Sexy’ e ‘Taj Mahal’ e, mais recentemente, no caso do cantor James Blunt que teve a melodia de ‘Same Mistake’ plagiada no forró ‘Coração Cachorro’, é que, reconhecido o plágio, o autor é incluído entre os criadores da obra e participa nos royalties. É bem comum, aliás, que isso seja feito por acordo, como foi nestes dois casos”, explica Miguel Mendes.
Rod Stewart acabou assumindo o erro, afirmando que era um plágio involuntário. O músico britânico teria vindo ao Brasil passar o Carnaval em 1978, com Elton John e Freddie Mercury, ouvido a música e ficado com ela na mente.
Em sua autobiografia, o músico defendeu que não chegou no estúdio com essa intenção, mas que certamente a canção de Jorge Ben Jor estava em sua memória. Com o ganho de causa, Ben Jor e Stewart firmaram um acordo em que ambos abriram mão dos royalties da canção, doando-os ao Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), encerrando o caso de forma amigável.
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