Talvez tenham poucos assuntos tão irrecusáveis ao jornalismo televisivo do que as manifestações públicas. Enquanto pauta, a cobertura de protestos é um tema espinhoso justamente porque confronta as emissoras com um paradoxo insolúvel: por um lado, as manifestações são pautas indeclináveis, pois significam uma mobilização de um grande número de pessoas que reivindicam relevância jornalística para algo que defendem. Por outro lado, há o incontornável problema de que, independente de como sejam as coberturas televisivas, elas sempre serão parciais, recortes de algo maior e que nem sempre (quase nunca) cabe dentro da tela.
Ou seja, as manifestações populares provocam sempre algum tipo de disputa entre narrativas. Há uma imposição de importância por aqueles que lá estiveram, e uma cobrança por uma representação “justa” dentro daquilo que uma emissora é capaz de transmitir. Talvez por isso a cobertura destes eventos seja sempre um fracasso: elas serão sempre falhas em relação àquilo que esperava os que estiveram presentes. Entendemos que os protestos são a manifestação literal da voz do povo, mas aí surge mais um paradoxo: quantas pessoas são necessárias para configurar “o povo”?
Não por acaso, um dos erros clássicos da Globo envolveu justamente uma manifestação de cunho político. Um comício em prol do movimento das Diretas Já, ocorrido em janeiro de 1984, foi noticiado pelo Jornal Nacional como se fosse uma celebração pelo aniversário de São Paulo. O evento reuniu cerca de 300 mil pessoas na Praça da Sé – configurando, de fato, um caso de magnitude comparável a poucos momentos da história, mas noticiado pela maior emissora do país como uma mentira, um exemplo de fake news.
Mas estamos bem distantes de 1984 e hoje a cobertura das manifestações é bem mais complexa, especialmente porque os veículos de comunicação não têm mais o poder que um dia tiveram. Suas vozes não reinam mais absolutas: em todo e qualquer evento, há numerosos celulares e câmeras nas mãos das pessoas, todos prontos para produzir contranarrativas em relação àquelas criadas pelas mídias hegemônicas. Ou seja, o questionamento sobre estas coberturas sempre existiu, mas hoje – ou melhor, pelo menos desde as jornadas de junho de 2013, e pela ação ativa de grupos independentes como o Mídia Ninja – toda e qualquer versão sobre grandes aglomerações consegue ser facilmente desmentida em velocidade impressionante.
As manifestações populares provocam sempre algum tipo de disputa entre narrativas. Há uma imposição de importância por aqueles que lá estiveram, e uma cobrança por uma representação ‘justa’ dentro daquilo que uma emissora é capaz de transmitir.
Obviamente, nem todo grande evento sofre uma cobertura mentirosa – e é aí que reside a grande delicadeza da cobertura de protestos, que é o fato de que há muito pouco que possa ser precisado nas notícias deste tipo de acontecimento. Para começar, há sempre aquela disputa inicial entre número de participantes: normalmente a Polícia dá sua versão estimada sobre quantidade de pessoas, e os organizadores do evento sempre relatam uma aferição muito mais generosa. Deste modo, fica sempre subentendido que número de pessoas é um fator essencial na cobertura destas manifestações. Ajuntamentos de pouca gente, a princípio, tem baixo valor dentro do jornalismo.
Neste sábado (29) tivemos, então, mais uma chance de por esse tipo de cobertura à prova a partir das manifestações ocorridas em 26 estados do Brasil em protesto contra o candidato Jair Bolsonaro, em contrapartida a outros movimentos que o defendiam. A cobertura, é claro, teve suas dificuldades. A RPC, afiliada da Globo no Paraná, por exemplo, dedicou menos de 10 segundos para falar da manifestação, iniciada na Boca Maldita, e que percorreu a R. XV de Novembro até a Praça Santos Andrade, diluindo-a entre outras pautas frias (ou seja, sem muita urgência). Falou porque teria que falar alguma coisa, para não sofrer as críticas em relação à omissão. A única informação trazida foi a incongruência entre o número de participantes segundo a polícia e segundo a organização. No entanto, fez mais do que outras emissoras que nem noticiaram o fato.
Cobertura um pouco melhor foi feita pelo Jornal Nacional, que reservou uma reportagem de 5 minutos, ainda que não tenha sido chamada na escalada (aquela fala dos apresentadores que leem as manchetes e elencam as principais notícias de um telejornal). A reportagem destacou a presença de movimentos nos 26 estados, e veiculou imagens ao longo do país, trazendo peso à cobertura. No entanto, o fato de que não houve qualquer entrevistado (negando-se a dar voz para quem esteve lá e abrindo mão do discurso emitido) acabou trazendo um tom de festa de carnaval ao acontecimento. A reportagem, inclusive, chegou a destacar os shows que ocorreram em algumas cidades.
Além disso, a matéria foi emendada com outra sobre os protestos de defesa a Bolsonaro – claramente ínfimos, conforme se viu pelas próprias imagens –, colocando em pé de equivalência um movimento gigantesco (que unia, é bom lembrar, pessoas que pretendem votar em diferentes candidatos) com iniciativas isoladas e inócuas. Não deixa de ser uma forma de desdizer o peso de uma manifestação.
Ainda que a cobertura tenha tido falhas, um episódio no Jornal Nacional merece destaque. O apresentador Rodrigo Bocardi leu uma nota editorial após a fala do candidato Jair Bolsonaro, que sugeria possibilidade de fraude nas eleições, tentando instalar uma paranoia coletiva – que seria concretizada, é claro, com a sua derrota. Incisivo, o texto lido por Bocardi (leia integralmente aqui) foi bem pontuado e deixou bem claro que este é um momento em que mesmo o jornalismo – que se norteia pelo parâmetro da imparcialidade absoluta – precisa assumir responsabilidade e tomar partido em situações limite como as que vivenciamos atualmente.
Por fim, recomendo a oportuna análise de José Roberto de Toledo em texto publicado na piauí. Sua precisão é cirúrgica, e destaca um fator relevante quanto à TV: o fato de que o candidato que liderou todas as pesquisas é um dos que têm menor tempo de televisão fala muito sobre uma mudança de paradigma nos meios de comunicação. Não por acaso, os protestos do #EleNão foram pouco destacados por uma televisão que não consegue mais determinar os rumos de uma eleição.