Já é lugar comum dizer isso, mas não custa relembrar: vivemos na época da hipervigilância. Os medos e fobias que antes pareciam talvez fantasiosos nos livros, de que um dia estaríamos cobertos por olhos que nos veem a todo instante, sem qualquer descanso (a premissa do clássico 1984, de George Orwell, por exemplo), não fazem mais parte da ficção científica. Isto, sem dúvida, é fato incontestável.
Esta perspectiva, no entanto, tem trazido desafios a todas as esferas da vida – dentre elas, às próprias mídias de massa, como a televisão. Se outrora os personagens da TV (atores, apresentadores, jornalistas, apresentadores, etc.) pareciam pessoas inalcançáveis à boa parte da população, hoje temos a sensação de que eles estão muito próximos de nós – estão presentes nas redes sociais, expressando suas opiniões, postando fotos que nos fazem adentrar em suas vidas pessoais, fazendo piadinhas como se fossem um vizinho com quem convivemos quase que diariamente.
E é claro que as emissoras de televisão costumam usar todas estas possibilidades de proximidade muito estrategicamente. Em um dos primeiros textos desta coluna da Escotilha, no já longínquo ano de 2015, eu já discutia que este esforço de “humanização” das personas televisivas se tornaria cada vez mais frequente, justamente por haver um desejo coletivo de estar mais perto daqueles que, em outros tempos, pareciam intangíveis. Nós, brasileiros, temos horror à distância, já dizia Sergio Buarque de Hollanda, e neste sentido o advento da internet se tornou uma espécie de sonho dourado de que, agora, todos estaríamos juntos, ao alcance de um clique.
Em três anos, no entanto, muita coisa mudou. Hoje já nem estranhamos mais que mesmo o Jornal Nacional, o mais sisudo dos telejornais, esteja mais descontraído. Ver o William Bonner tirar uma selfie ou fazer alguma piadinha com seus colegas de telejornal já não nos choca, como já chocou um dia. Assentimos, finalmente, que as redes sociais diminuíram a distância entre nós – a ponto que, de certa forma, passamos a virar os componentes fundamentais da hipervigilância que nos cerca (não era isso que previa George Orwell, afinal?). Estamos sempre prontos a espiar a vida das pessoas públicas e a expor sem pensar duas vezes qualquer deslize que elas tenham cometido em suas redes sociais.
Há a ideia de que os jornalistas são responsáveis pela imagem dos veículos – o que, de certa forma, descredibiliza a função histórica das próprias instituições jornalísticas.
Frente a isso, as emissoras ainda estão tateando a melhor forma de lidar com este fenômeno. Recentemente, causou alguma repercussão a carta pública divulgada pela Rede Globo com diretrizes para seus jornalistas quanto ao uso das redes sociais (leia aqui o documento). Com tom suave, a carta, assinada por João Roberto Marinho, declara-se mais como uma “recomendação” do que uma ordem (pelo menos não explícita), e procura direcionar como os profissionais devem se portar quando forem escrever e/ou postar nestas plataformas que, a princípio, são vinculadas à sua vida privada (se é que ela ainda existe).
A premissa do documento reitera uma lógica vinculada aos valores jornalísticos: os jornalistas da emissora são compromissados com a isenção, a qual não poderá ser alcançada caso os leitores estejam munidos de informações sobre sua vida pessoal. Ou seja: se eu descubro que tal jornalista esportivo é torcedor do Corinthians, ele não terá mais credibilidade para cobrir jogos do Palmeiras, por exemplo. Se alguém pode dizer que sempre foi assim, a diferença hoje é que toda e qualquer informação está acessível muito mais facilmente por qualquer cidadão – está, literalmente, ao alcance de um clique.
A carta foi mal recebida por veículos jornalísticos como o The Intercept Brasil, que enxergou ali uma forma de “domesticar” os jornalistas da emissora. Em uma acurada análise do documento, o portal chegou a contabilizar quantas vezes o verbo “dever” aparece na carta, o que desconstrói, por consequência, a ideia de que seja uma mera recomendação. Seria, claramente, uma forma de cercear a liberdade do jornalista – e constrangê-lo a adequar seu comportamento mesmo quando não está trabalhando.
Não vou entrar no mérito ou não se é legítimo o que é requisitado pela carta, pois entraríamos numa esfera legal. No entanto, considero que há elementos interessante que merecem ser analisados neste documento. Em certo momento, a carta de Marinho afirma: “os jornalistas são em grande medida responsáveis pela imagem os veículos para os quais trabalham e devem levar isso em conta em suas atividades públicas, evitando tudo aquilo que possa comprometer a percepção de que exercem a profissão com isenção e correção”.
Existe, nesta colocação, algumas afirmações que precisam ser reconhecidas e debatidas. Em primeiro lugar, a premissa de que jornalista bom é jornalista sem opinião (como se a separação entre fato e opinião não existisse desde sempre na imprensa, e se textos opinativos e informativos não pudessem ser concretizados pelo mesmo profissional). Além disso, há a ideia de que os jornalistas são responsáveis pela imagem dos veículos (o que, de certa forma, descredibiliza a função histórica das próprias instituições jornalísticas, e põe os seus problemas de confiança e respeito perante a população na conta dos profissionais).
Mas claro está que a carta se inspira por um medo crescente que os veículos têm de lidar com as novas formas de escândalo que são cada vez mais frequentes nas redes sociais, já que as ferramentas que permitem vasculhar a vida de qualquer um estão na mão de todo cidadão – basta lembrar, por exemplo, do fiasco com os tweets racistas do youtuber Julio Cocielo. O medo é tão grande que, recentemente, a Globo ameaçou punir quem usasse prints de suas imagens para produzir memes.
A existência destas novas possibilidades de monitorar os deslizes de pessoas públicas a partir dos rastros que elas deixam é uma coisa ruim? A resposta é: obviamente não. É, por um lado, uma conquista coletiva. Mas, por outro, traz outros desafios e responsabilidades, pois é bem possível devassar a vida de qualquer um sem nem nos darmos conta disso. São muitos os casos de pessoas que tiveram suas vidas destruídas por razões bastante pífias (o livro Humilhado – como a era da internet mudou o julgamento público, do jornalista Jon Ronson, traz uma importante investigação sobre este fenômeno tenebroso).
Mas, por fim, creio que o que deveríamos nos perguntar é: por que nos interessa tanto saber sobre a vida privada das pessoas que “contratamos” para nos informar sobre o mundo? Recentemente, uma mera interação no Twitter entre o comentarista Wagner Vilaron, do canal SportTV, com um atriz pornô virou uma “notícia” – que, na verdade, é mera bisbilhotice da vida alheia. Bisbilhotice da qual, é bom lembrar, compactuamos a cada vez que clicamos no link da notícia ou damos risada desta história. Talvez sejamos nós, afinal, as engrenagens vivas que fazem a vigilância funcionar, sem nem ao mesmo nos darmos conta disso.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Para continuar a existir, Escotilha precisa que você assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Se preferir, pode enviar um PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.