Há sete anos, o grupo humorístico Porta dos Fundos lança especiais de Natal, em que enfrentam o desafio de falar sobre episódios sagrados para muita gente (como o nascimento e a morte de Jesus e outros trechos da Bíblia) mantendo o viés cômico e satírico da trupe. A cada ano que passa, cria-se uma certa expectativa: quais “barreiras” o Porta dos Fundos vai romper dessa vez? O ápice parece ter chegado com o especial A primeira tentação de Cristo, que sugeria um Jesus gay (e fez o grupo alvo para ataques de ódio mais concretos, como um ataque à sua sede física).
Nem sempre “ousadia” significa construir um texto engraçado – e talvez em 2019 o grupo tenha perdido a mão, no sentido de pender mais para a polêmica que para o humor. Mas isso é finalmente corrigido com Teocracia em Vertigem, especial de 2020 que acerta em cheio ao parodiar o reverberado Democracia em Vertigem, de Petra Costa, e costurar Jesus com inúmeras referências do noticiário político brasileiro há pelo menos cinco anos.
No especial (disponível no Youtube, e não na Netflix como nos anos anteriores), Jesus está praticamente ausente. A paixão de Cristo (a trajetória rumo ao seu calvário, morte e ressurreição) é recontada por meio de testemunhas. A boa sacada está nos personagens que são chamados a contar essa história: vão desde Maria Madalena, Maria, os apóstolos mais próximos a Jesus (como Pedro) ou mais “polêmicos” (como Judas), até alguns aleatórios, como cidadãos do bem, um comerciante de nome “Véio Luciano”, um negacionista chamado “Olavus”, alguns sujeitos curados por Jesus, difusores de fake news e outros falsos messias.
A falta de compromisso com uma narrativa histórica recente, misturando todos os personagens, é uma espécie de trunfo, pois possibilita que o Porta dos Fundos deixe pistas que precisam ser decifradas pelo espectador.
O humor, portanto, está no pastiche em relação ao formato documental (ou seja, na alternativa de “mimetizar” um estilo sério como o explorado pelo filme de Petra Costa, que se propõe a construir uma explicação plausível à derrocada do sistema democrático brasileiro) e no jogo feito na conexão entre a história de Jesus e os personagens da política nacional. Não há tanto compromisso com a coerência, aliás: em Teocracia em Vertigem, Jesus é tanto Dilma, sofrendo um impeachment em pleno Império Romano, quanto Temer, o vice decorativo, quanto um cultuado (Jair) Messias.
A falta de compromisso com uma narrativa histórica recente, misturando todos os personagens, é uma espécie de trunfo, pois possibilita que o Porta dos Fundos deixe pistas que precisam ser decifradas pelo espectador. Aparecem, por exemplo, referências ao fatídico Power Point de Deltan Dallagnon, às rachadinhas da família Bolsonaro (e às “89 mil moedas de pratas” na conta de Michele Bolsonaro), ao “tchau, querida” proferido numa ligação de Lula para a Dilma.
Além disso, Teocracia em Vertigem também acerta ao dialogar com a cultura pop dos memes. Preste atenção no sedutor Barrabás (vivido por Renato Góes), que emula os trejeitos de Mario Junior, o galã do TikTok, no fato de que Pôncio Pilatos é “membro da família Pôncio”, e na participação quase despercebida de Emicida. A “patota” que abraça o Porta dos Fundos, aliás, está bem representada nas participações especiais de Teocracia em Vertigem, que traz os humoristas do Choque de Cultura, Helio de La Peña (do Casseta e Planeta), o ator Marcos Palmeira e as cantoras Tereza Cristina e Silvia Machete, além da própria Petra Costa.
Se tem algum ponto fraco no filme, talvez esteja no videoclipe também em linguagem “internética” em que Jesus finalmente dá as caras, concluindo que, diferente do que acredita boa parte dos cristãos, não vai voltar. “Já voltei como homem, negro e travesti, e me mataram. Se voltar de novo vai ser para destruir”, canta o Jesus de Fábio Porchat. A ameaça bélica, ao que me parece, destoa um pouco do tom festivo, bem-humorado e autocrítico da ideia de Jesus que o Porta dos Fundos, com louvor, ajuda a difundir há uns bons anos.