Uma das poucas alegrias dos brasileiros durante esta quarentena tem sido assistir à televisão. Não falo, claro, dos noticiários tensos com os escândalos políticos e com as atualizações aterradoras do número de mortos pela COVID-19. Impossibilitadas de gravar boa parte da sua grade, algumas emissoras têm resgatado arquivos antigos.
A plataforma Globoplay, streaming da Globo, nos deu um bom motivo para ligar a TV ou os tablets: disponibilizou na íntegra algumas de suas telenovelas mais lembradas ao longo das décadas. Uma dela é Tieta, adaptação de Aguinaldo Silva para o romance de Jorge Amado, exibida na Globo entre agosto de 1989 e março de 1990.
Eu tinha 9 anos quando Tieta passou na TV, em horário nobre. Minhas lembranças dela são contaminadas por uma memória afetiva que envolve a sensação de que todos em minha volta paravam para assisti-la e, no dia a dia, repetiam os bordões e as expressões faladas pelos personagens. Era uma época em que, certamente, a TV possuía mais centralidade na vida da população, talvez por haver menos opções culturais que hoje (um dado sintomático: o primeiro capítulo de Tieta registrou 70 pontos de IBOPE, conforme matéria da Folha de São Paulo, número hoje impensável).
Esta lembrança de infância marcada pela afetividade me fez querer rever a icônica novela no Globoplay, e enfrento atualmente o desafio de assistir aos 197 capítulos, um compromisso estranho em épocas de séries televisivas com temporadas bem mais curtas. Por isso, trago aqui uma leitura atualizada desta telenovela 31 anos depois de sua exibição – e o impacto que ela traz frente às mudanças que a TV sofreu nestes anos todos. No saldo, a impressão que Tieta traz é que era, de fato, uma novela magnânima – e que isso não é apenas um filtro da saudade de quem olha para o passado.
Ainda que Tieta tivesse uma premissa cômica, sua trama era densa: contava a história de uma cidade pequena, Santana do Agreste, no interior da Bahia, no qual o conservadorismo era a norma. Todos sabem da vida dos outros (as mulheres que cuidam dos Correios leem as cartas que chegam e espalham as fofocas) e as “carolas” da igreja se encarregam de espalhar um discurso de moralidade hipócrita.
É neste cenário que uma menina liberal, que ainda vai ao colégio e cuida de cabras (por isso é chamada de “cabrita” pelos conterrâneos, de forma abusiva), tem casos com vários homens da cidade. Ao ser descoberta pelo pai na cama de um forasteiro, Tieta é escorraçada de Santana de Agreste aos golpes de cajado, diante de todos os moradores, simbolicamente em frente à igreja. Sangrando, ela vai embora e promete um dia voltar para se vingar.
Este é o resumo apenas do impactante primeiro capítulo, que envolve assuntos que hoje talvez não entrassem em uma trama da novela das nove. Tieta é uma menor de idade, sedutora, que faz sexo com dois homens diferentes só no episódio de estreia e flerta com tantos outros.
Em um diálogo com um amigo de sua idade que tenta ficar com ela (ao qual ela responde que ele tem “cheiro de leite”), Tieta diz que vê que todos os homens da cidade a olham com desejo, inclusive o seu pai. Há algo de hipnótico nessa mulher, o discurso sugere, tal como se ela fosse uma encantadora de homens, algo bíblica (ideia já conjugada com a música-tema da novela, interpretada por Luiz Caldas: “Tieta não foi feita da costela de Adão, é mulher diabo, minha própria tentação. Tieta é serpente que encantava o paraíso, ela veio ao mundo pra virar nosso juízo”). O feminino, em Tieta, é visto de forma nociva? Esta é uma pergunta complexa.
A impressão que Tieta traz é que era, de fato, uma novela magnânima – e que isso não é apenas um filtro da saudade de quem olha para o passado.
Expulsa de Santana de Agreste, Tieta se torna uma espécie de figura mítica: ela manda mensalmente uma quantia de dinheiro para sua família, justamente a que a escorraçou em nome da “moral e dos bons costumes”, mas que aceita sua doação de bom grado.
Foi para São Paulo, onde enriqueceu. Há vários subtextos na trama: não se diz, de forma clara, porque Tieta tem tanto dinheiro, mas subentende-se que seja uma prostituta ou uma cafetina.
Mas a postura altiva de Tieta (interpretada por Claudia Ohana, linda, na primeira fase, e por Betty Faria como a Tieta que retorna ao Agreste) coloca-a enquanto mulher empoderada, dona de si e de sua sexualidade – em oposição à sua irmã Perpétua (em atuação magistral de Joana Fomm), uma viúva invejosa que só se veste de preto e se gaba de ter sido bem-amada (sexualmente) pelo marido morto. Vale lembrar que Perpétua guardava numa caixa um segredo, que sugere-se na trama ser o pênis do morto (isso também não é esclarecido).
Outro elemento importante é que havia uma apropriação subversiva do conservadorismo de Santana do Agreste, uma vez que a maior parte das mulheres (especialmente as mais “beatas”) claramente abafavam um furor sexual que escapava a todo instante. As duas comparsas de Perpétua ficaram na memória do povo: Cinira (Rosane Gofman) e Amorzinho (Lília Cabral) quase sempre falavam sobre os homens e viviam tendo “ataques” em que deixavam seus desejos virem à tona.
No entanto, apesar da postura empoderada das protagonistas, há um olhar de subjugação das mulheres em vários outros personagens de Tieta – personagens esses que soavam até simpáticos em 1989, mas hoje talvez fossem escandalosos. Por exemplo: Modesto Pires (vivido por Armando Bógus) era um homem casado que mantinha sua amante – chamada na novela de “teúda e manteúda”, expressão que pegou na cultura – em uma espécie de cárcere privado. Já Zé Esteves (Sebastião Vasconcelos), o pai que humilhou Tieta com seu cajado, também é abusivo com sua mulher Tonha (Yoná Magalhães), que vive encolhida pelo medo.
Ainda assim, o personagem mais chocante certamente é o coronel Artur da Tapitanga (Ary Fontoura), que mantém em sua fazenda uma espécie de harém de menores de idade. São meninas pobres a que chama de “rolinhas”, e que foram compradas de seus pais. O coronel oferece a elas casa e alimentação e, em contrapartida, chama-as para “ensinar a tabuada” – o que, subentende-se na trama, é o momento em que as molesta. A pedofilia aqui fica nas entrelinhas, mas é evidente – e sem dúvida um personagem desses levantaria todos os tipos de protestos em uma novela atual.
Após 31 anos, fica a questão no ar: Tieta era uma novela vanguardista ou conservadora? Seria possível hoje, num país talvez mais moralista, uma novela baseada na Bahia das obras de Jorge Amado? As mulheres em Tieta eram exploradas ou empoderadas? Em relação às questões que aborda (além dos temas já citado, também tratou de homossexualidade, casamentos poliamorosos, incesto), Tieta era à frente do seu tempo, ou nós que retrocedemos?
São todas questões que não assumem qualquer resposta fácil. No entanto, uma coisa é certa: três décadas depois, Tieta continua tão deliciosa quanto foi na época em que foi ao ar pela primeira vez. Com parcas exceções (Amor de mãe é uma delas), talvez se possa dizer que não se fazem novelas como antigamente.
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