O autor João Emanuel Carneiro radicalizou na reta final de Todas as Flores, telenovela de 85 capítulos que o roteirista e teledramaturgo carioca escreveu para a plataforma de streaming Globoplay. Se na primeira parte, que foi ao ar no ano passado, o autor parecia disposto a subverter o formato melodramático, se utilizando de suas convenções para nelas injetar doses de realismo e de comentário social, na segunda leva de episódios ele resolveu ir em outra direção e optar pelo excesso, pelo pastiche.
A saga de Maíra (Sophie Charlotte), jovem cega, criada pelo pai, Rivaldo (Chico Diaz) no coração do país, não fugia a convenções do folhetim tradicional em sua temporada inicial. Depois de precipitar a morte do ex-marido, a mãe da garota, Zoé (Regina Casé), a convence a retornar ao Rio com um propósito escuso: salvar a vida da irmã, a inescrupulosa Vanessa (Letícia Colin), que está com leucemia, doando-lhe a medula óssea.
Em um capricho de destino, Maíra se apaixona por Rafael (Humberto Carrão), noivo milionário da irmã, que não o ama e só está interessada no dinheiro do rapaz, herdeiro da Rhodes, grande loja e marca de roupa, acessórios e perfumes. Detalhe: a garota cega tem um olfato privilegiado e sonha tornar-se perfumista.
O que Maíra também não sabe é que Zoé, desde a juventude miserável, é amante de Humberto (Fábio Assunção), pai de Rafael, e faz parte de uma organização criminosa, que tráfico humano e mantém no interior de Minas Gerais uma fazenda, onde jovens trabalham em regime análogo à escravidão, além de gerarem bebês, vendidos a peso de ouro a famílias estrangeiras.
João Emanuel Carneiro, autor de Avenida Brasil, a mais importante novela exibida neste século, e um dos roteiristas do premiado filme Central do Brasil, conseguiu fazer de Todas as Flores no ano passado um grande sucesso de audiência e fenômeno nas redes sociais. Tanto por conta da trama central, muito bem amarrada, mas também por seus enredos subjacentes.
Mas se, em sua primeira parte, Carneiro parecia estar costurando uma inventiva crônica folhetinescas sobre a sociedade brasileira, retratando seus paradoxos e abismos, o autor tomou outra direção na leva final de episódios.
Encantou o público, por exemplo, a deliciosa Mauritânia (Thalita Carauta), ex-atriz pornô decadente que, ao se casar com o tio de Rafael e ficar viúva, torna-se herdeira da Rhodes e traz à trama da novela picardia e alívio cômico, contrapontos importantes para o teor melodramático da trama principal, focada no intenso jogo de trapaças orquestrado por Zoé e Venessa, amante de Pablo (Caio Castro), ambicioso funcionário da Rodes, filho da costureira Judite (Mariana Nunes), por quem Humberto é apaixonado desde sempre.
Todas as Flores, por mais que não fugisse em sua essência da matriz melodramática mais tradicional, não se apropriava dela, em sua primeira parte, sem, também, subvertê-la. Na pele de Regina Casé, atriz que como poucas consegue transitar entre o cômico e o dramático, Zoé é uma mãe sem qualquer instinto maternal: alpinista social, por baixo de sua fina casca de sofisticação, é vulgar até a medula. Saiu da Gamboa, bairro pobre do Centro do Rio, de onde também são Humberto, Judite e Mauritânia, mas nega suas origens.
Mas se, em sua primeira temporada, Carneiro parecia estar costurando uma inventiva crônica folhetinesca sobre a sociedade brasileira, retratando seus paradoxos e abismos, o autor tomou outra direção na leva final de episódios. Seria injusto dizer que se perdeu. Ele parece, sim, ter feito outra opção, bastante consciente: a de abrir mão do contexto socioeconômico e cultural da trama, para mergulhar de cabeça no melodrama, deixando pelo caminho, por exemplo, toda a potência de Mauritânia e sua subtrama, muito enfraquecida.
A narrativa ágil e diálogos inspirados, cortantes, continuaram de certa forma em Todas as Flores, mas a novela esqueceu do Brasil, do cenário político, de seus personagens mais populares, para focar, com lente de aumento, no estapafúrdio jogo de gatos e ratos de Maíra, Zoé, Vanessa, Humberto e Pablo.
Eles vivem até o último capítulo as situações mais absurdas, inverossímeis, com direito e tiros, torturas, chantagens e correrias, por vezes eletrizantes e/ou hilariantes. Todas as Flores, no entanto, enfraqueceu, perdeu muito de seu brilho, mas continuou uma das novelas mais interessantes dos últimos tempos, muito por conta da pena afiada de João Emanuel Carneiro.
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