O livro O Homem do Sapato Branco: A Vida do Inventor do Mundo Cão na Televisão, lançado pela Todavia, é obra de um jornalista de mente inquieta e que há anos se dedica a uma análise séria da televisão. Na própria obra, Maurício Stycer menciona que elaborar uma grande reportagem de Jacinto Figueira Júnior parte de uma inquietação por entender como o sensacionalismo se instalou com tanta força no Brasil.
Stycer tem uma experiência vasta no jornalismo brasileiro, com passagens em veículos como Estadão, Jornal do Brasil, Lance!, Época e UOL. É colunista do jornal Folha de São Paulo. Além de O Homem do Sapato Branco, escreveu outros livros, como Topa Tudo por Dinheiro (2018), Adeus, Controle Remoto (2016) e História do Lance! (2009).
Em entrevista para a Escotilha, Maurício Stycer compartilha algumas percepções capturadas durante a produção do livro sobre Jacinto e as suas relações com o jornalismo brasileiro atual.
ESCOTILHA » Maurício, teu livro faz uma análise muito interessante não apenas da figura do Jacinto Figueira Júnior na televisão, mas do que ele representava na mídia e como foi decodificado coletivamente. Você levanta várias informações que mostram que o que ele fazia, ao expor o que entendia como a “realidade”, era já muito criticado. Em certo momento, você menciona o Goulart de Andrade como tendo um possível parentesco com esse trabalho. Por que você acredita que o Goulart acabou se tornando cult e o Jacinto se tornou um símbolo do que havia de mais execrável na TV?
Maurício Stycer » O livro O Repórter na TV, de Bruno Chiarioni e Igor Sacramento, que resgata cerca de 50 programas de grande reportagem exibidos no Brasil, dedica um capítulo de 30 páginas a Goulart de Andrade e apenas algumas brevíssimas menções soltas a Jacinto. Ambos tiveram o instinto de buscar a notícia nas ruas e, frequentemente, na madrugada. Mas a diferença é clara. Goulart foi um “artista do jornalismo”, na caracterização dos autores, recorreu a pautas de extremo apelo, mas nunca largou a mão da reportagem. O mesmo não se pode dizer de Jacinto, que frequentemente encenou situações, forjou assuntos e apelou para o moralismo.
“Temo que o grande público nem sempre perceba quando o jornalismo tangencia ou, pior, abraça o entretenimento”.
Maurício Stycer
A trajetória profissional de Jacinto mostra um pouco como a história da TV brasileira foi evoluindo e aos poucos definindo alguns conceitos. O que ele fazia nos anos 60, por exemplo, talvez mal pudesse ser chamado de reportagem hoje em dia. Como você acha que essas concepções – as diferenças entre jornalismo e entretenimento, por exemplo – estão sendo compreendidas na programação atual? E qual a importância da participação do público nessas percepções?
Temo que o grande público nem sempre perceba quando o jornalismo tangencia ou, pior, abraça o entretenimento. Quem será que repara que o uso de trilha sonora em reportagens tem a intenção de manipular a emoção do espectador? Quem produz jornalismo deveria ter a responsabilidade de demarcar claramente esse limite, o que, infelizmente, nem sempre ocorre. Nem mesmo o novo Linha Direta, com toda a preocupação que deixa transparecer, consegue evitar essa confusão.
Em O Homem do Sapato Branco, é bem interessante o modo com que você vai construindo um relato biográfico sobre Jacinto, a partir de sua vida e suas escolhas profissionais que certamente acarretaram no início de muito do que temos de ruim na TV até hoje. Ao mesmo tempo, dá para sentir uma generosidade sua no texto em relação a ele. Daria para dizer que Jacinto trouxe alguma contribuição positiva com o seu trabalho?
Já ouvi esse mesmo comentário que você fez, de que dá para sentir uma generosidade minha com o Jacinto, mas em chave de crítica negativa. Que eu teria sido complacente com ele em alguns momentos do livro. Não concordo com a crítica. Acho que, a partir de um certo momento da minha pesquisa e apuração, de fato, senti pena do Jacinto, especialmente na fase final da vida dele, quando foi objeto do pior tipo de sensacionalismo.
Não sou o tipo de pessoa que diria que “ele mereceu isso”. Muito pelo contrário. E também acho que há que se fazer uma distinção entre o lado profissional e o pessoal. Destaco positivamente a sua vontade de buscar a notícia nas ruas ainda no início da década de 1960. Mas não vejo nenhuma generosidade minha no relato sobre os procedimentos do Jacinto como apresentador de televisão. Por outro lado, busquei ouvir, sempre, o maior número de versões sobre cada episódio polêmico ou degradante, e sempre há quem apresente uma versão mais suave dele.
O livro também relata vários momentos em que as reportagens e os programas de Jacinto Figueira Júnior foram vetadas e até censuradas, às vezes pelas próprias emissoras em que ele trabalhava. Me chama a atenção que essas questões sobre os impactos dos programas de TV são debatidas até hoje (como a ideia de uma regulação da mídia), e já existiam de alguma forma no tempo de Jacinto, mas parece que não evoluíram muito. Na sua percepção, como o Brasil caminhou nesta discussão de uma possível regulação de sua mídia?
A legislação sobre televisão no Brasil é antiga e está ultrapassada. Claramente, há necessidade de uma renovação e reformulação. Sou contra qualquer forma de censura. Não enxergo a discussão sobre uma nova regulação da TV no Brasil como uma forma de censura. Ao contrário. Essa discussão é muito necessária e está atrasadíssima, no país.
O Homem do Sapato Branco é o seu segundo livro centrado na recuperação e organização da história de uma figura televisiva importante. Há uma escassez neste tipo de bibliografia? E quais outras histórias você gostaria de reportar?
Não acho que há escassez de estudos sobre a história ou memória da TV brasileira. Há, sim, muitas dificuldades na realização de estudos deste tipo devido à carência de imagens antigas e precariedade de fontes. Em todo caso, acho que é um campo aberto para pesquisadores. Pretendo contar outras histórias como as de Silvio e Jacinto, mas prefiro não mencionar nomes, por enquanto.
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