Afinal, o que significa despir-se? O que significa estar nu – se é que alguma vez estamos – perante o mundo, e mais importante, perante a nós mesmos? Será que efetivamente nos desnudamos quando nos desvestimos, livramos das “cascas” com as quais nos cobrimos desde o nascimento? Nada mais natural e mais primitivo que a nudez, diriam alguns. Esta tensão entre desabrigar-se/ vestir-se da própria pele parece ser ainda mais intensa na vida das mulheres, sempre versáteis em incontáveis papéis (talvez se enganem os que pensam que as tantas revoluções – comportamentais, sexuais, feministas, etc. – assistidas nas últimas décadas tenham apenas “libertado” as mulheres de seu papel social esperado de acessório masculino).
A nudez feminina, em seu sentido mais abrangente, é o tema do programa Apartamento 302, exibido no Canal Brasil às sextas-feiras, meia-noite. Trata-se de um projeto do conhecido fotógrafo carioca Jorge Bispo, que já declarou em entrevista que “só sabe fotografar gente”. A premissa da atração, organizado em pequenos programas de cerca de 10 minutos, é simples. Bispo recebe “mulheres reais” no apartamento em que reside, e propõe a elas que se dispam frente à câmera. O despir-se, em Apartamento 302, se dá em vários aspectos: desde o desnudar-se fisicamente, o ato de encarar o corpo e legitimá-lo perante o próprio olhar, até o despir-se de todas as couraças vestidas para enfrentar a vida diária.
O formato de Apartamento 302 é o seguinte: uma mulher é convidada a contar a própria história perante uma câmera. A estética, típica do documentário, enfoca a convidada em seu próprio ambiente, onde (teoricamente) se sente mais confortável. Neste local conhecido e dominado, ela se narra, autofabula-se, conversa com um interlocutor que jamais é enquadrado. Ali começa o trabalho de encarar a própria nudez, metafórica – contar-se com o máximo de honestidade que for possível, autorizar que a câmera penetre a intimidade daquilo que as perturba, conflita, orgulha.
Na segunda etapa de cada episódio, cada mulher adentra o apartamento 302 e se encontra com Jorge Bispo. A estética se transmuta: do mundo colorido e dominado, passa-se ao mundo preto e branco dos registros do fotógrafo, pelos que as mulheres buscam (re) assumir sua nudez frente a beleza trazida pelo olhar de Bispo. Após encarar-se – enfrentar os fantasmas que nem mais imaginavam que existiam, como diz uma das convidadas – é o momento de reencantar-se perante a câmera do conhecido retratista. Ver-se pelo próprio olhar, que não se esconde atrás de diferentes cascos e armaduras. Uma das fotografadas, por exemplo, nota a dificuldade em tirar um simples acessório, um colar que adorna o colo, que a impede de se sentir totalmente despida.
Em Apartamento 302, há um desafio interessante em transpor a experiência da fotografia para uma narrativa sequencial, regida pelo movimento e pela pulsão pela fala. “Cada foto conta uma história”, diz Jorge Bispo na abertura, e é esta a história a ser desvendada na sala do apartamento (um fato curioso: Bispo praticamente nunca é enfocado em primeiro plano; está sempre de costas, como se a narrativa quisesse esclarecer que, aqui, as protagonistas são elas).
Chama a atenção justamente algo que as une: o descontentamento inevitável com o próprio corpo, por mais ‘dentro do padrão’ que ele seja.
Os depoimentos são riquíssimos, e muito profundos, cercados de pequenas e grandes tragédias, enfocadas sem julgamento pela câmera. A mulher que encara o próprio corpo transformado por uma doença degenerativa que a tornou cadeirante, e reivindica o direito à própria sexualidade. A mulher vinda da França em busca do calor humano do Rio do Janeiro e choca-se ao notar a normatização do corpo feminino em uma cultura que se entende como tolerante e liberal. A mulher que luta para aceitar-se com trinta quilos adquiridos após a gestação, e ressente-se porque a filha – negra como ela – alisa o próprio cabelo. A mulher que passou por 14 cirurgias ginecológicas para conseguir – simplesmente – ser mulher.
Ou seja, a história por trás de toda foto, de alguma forma, é a história de todas as mulheres. Chama a atenção justamente algo que as une: o descontentamento inevitável com o próprio corpo, por mais “dentro do padrão” que ele seja. Num país em que o culto ao corpo é regra cultural, diz a filósofa Marcia Tiburi, “o corpo nu nesses contextos autorizados e até desejados não põe em cena a verdadeira nudez. A nudez verdadeira está sempre fora de contexto”.
Nesse sentido, a metáfora da nudez das mulheres de Jorge Bispo diz muito e é essencialmente política: pleiteia-se o direito de fugir da disciplina imposta aos corpos e às vidas, e a chance de enquadrá-los para além dos padrões midiáticos. Ao encarar-se despida, a mulher assume o poder que se descobre ao ver-se nua, de fato, pela primeira vez.
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