Tinha 16 anos quando atravessei, pela primeira vez, o limiar simbólico de uma sessão da meia-noite. Era 1981, e Curitiba, como o Brasil, ainda carregava os ecos abafados da ditadura. Embora a abertura política já estivesse em curso, pairava no ar um certo silêncio tenso, como se o país – e nós com ele – estivesse reaprendendo a respirar.
Naquela noite, a Rua Voluntários da Pátria parecia iluminada de forma especial. O Cine Astor, sala de exibição no coração da cidade, exibia Hair, adaptação cinematográfica do musical da contracultura dirigido pelo cineasta checo Milos Forman. O filme chegava como uma explosão de cores, vozes e corpos em liberdade, em contraste com o mundo rígido e disciplinado ainda sob a ditadura.
Convencer meus pais a me deixar sair de casa àquela hora foi, talvez, mais difícil que enfrentar a fila que dobrava a esquina do Astor. Mas algo em mim sabia que aquela experiência seria transformadora – e foi. A sala estava lotada. Havia jovens de cabelos compridos, roupas coloridas, olhos brilhando de expectativa e o cheiro inconfundível da maconha flutuando no ar. Não era apenas um público: era uma comunidade momentânea, unida por um mesmo desejo de transcendência.
Naquela noite, a Rua Voluntários da Pátria parecia iluminada de forma especial. O Cine Astor, sala de exibição no centro da cidade, exibia Hair, adaptação cinematográfica do musical da contracultura dirigido pelo cineasta tcheco Milos Forman. O filme chegava como uma explosão de cores, vozes e corpos em liberdade, em contraste com o mundo ainda rígido e disciplinado que nos cercava, ainda sob a ditadura.
Hair conta a história de Claude (John Savage), jovem do interior que chega a Nova York para se alistar no Exército e acaba envolvido com um grupo de hippies liderado pelo carismático Berger (Treat Williams). A trama é simples, quase episódica, mas o que realmente importa é o fluxo emocional do filme, seu mergulho em um universo sensorial de sonhos, questionamentos e desobediência.
Forman, que já havia assinado obras fundamentais como Um Estranho no Ninho, reinventa o espírito libertário do musical com um olhar ao mesmo tempo vibrante e melancólico. Há, em sua direção, uma ternura crítica – como se ele soubesse que aquele sonho estava fadado a se esgotar, mas, ainda assim, merecesse ser celebrado até o fim.
As coreografias de Twyla Tharp são uma aula de linguagem corporal. Em cada movimento, um manifesto: o corpo como território político, como forma de expressão e resistência. Aos 16 anos, naquele cinema abarrotado, vi pela primeira vez o cinema se tornar não apenas arte, mas possibilidade de vida. Hair me dizia, com música e imagens, que a liberdade não era um conceito abstrato, mas algo que se encarnava nos gestos, nos olhares, nas escolhas.
A cena final – um corte seco entre o sonho e a morte – ainda hoje reverbera em mim. Claude, tragado pelo sistema, assume seu lugar no Exército, enquanto Berger, num gesto trágico e heróico, o substitui. A multidão canta “Let the Sunshine In” diante do túmulo coletivo da juventude estadunidense, e aquela música ecoou em mim por semanas. Era ao mesmo tempo um lamento e um hino.
Voltei para casa na madrugada, com o coração em chamas. Sabia que algo tinha mudado. Não só por causa da história do filme, mas porque Hair me mostrou que o cinema podia ser uma forma de viver – ou, ao menos, de imaginar outras formas de existência.
O Cine Astor já não existe. A cidade mudou, e a memória dos cinemas de rua vai se apagando com o tempo. Mas aquela sessão da meia-noite, naquela Curitiba de 1981, permanece acesa em mim – como um fotograma perdido de um filme que ainda pulsa.
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