Uma das delícias de voltar a ser estudante é a possibilidade de reencontrar o prazer da descoberta. Não estou falando aqui do aprender, em princípio o objetivo principal de quem escolhe retornar aos bancos escolares. Mas da sensação quase inenarrável de, em meio aos inúmeros textos que um aluno de mestrado ou doutorado é intimado a ler ao longo do curso, tropeçar no sublime. Isso ocorreu comigo nesta semana quando li – e ouvi ser lido em voz alta – Saindo do Cinema (ou Ao Sair do Cinema, depende da tradução), de Roland Barthes.
Publicado em 1975 (1980, no Brasil, pela Editora Global) pelo polivalente pensador francês, um sujeito que escreveu sobre quase tudo na vida, o ensaio não apenas fala com enorme sensibilidade sobre o ritual que se inicia ao entrar na fila, comprar o ingresso, talvez até um pacote de balas na bombonière, e sentar entre estranhos para, apagadas as luzes, embarcar no anonimato numa espécie de hipnose, de sonho acordado. Barthes relata também, e principalmente, o estranhamento de, terminada a sessão, retornar ao mundo real na noite escura. Vagar pela rua ainda embriagado pelo que havia acabado de assistir.
Tenho idade suficiente para compreender a dimensão das sensações que o texto descreve – fui, desde muito novo, habitué das disputadas sessões à meia-noite do Astor e do Groff, cinemas de rua curitibanos que há muito deixaram de existir.
Tenho idade suficiente para compreender a dimensão das sensações que o texto descreve – fui, desde muito novo, habitué das disputadas sessões à meia-noite do Astor e do Groff, cinemas de rua curitibanos que há muito deixaram de existir. Mas também já tive tempo para me desacostumar, ou mesmo para quase ter esquecido de como era pôr os pés na vida real depois de vagar por um par de horas, ou até mais, pelas complexas galáxias de Luchino Visconti, Robert Altman, Ingmar Bergman, Sidney Lumet, Carlos Saura e outros tantos que não tenho espaço aqui para listar.
No ensaio, Barthes escreve: “o sujeito que fala aqui tem a reconhecer uma coisa: gosta de sair do cinema. Encontrando-se na rua iluminada e um pouco vazia, dirigindo-se dolentemente a algum bar, ele caminha silencioso (ele não gosta muito de logo falar do filme que acaba de ver), um pouco entorpecido, encolhido, friorento, enfim, sonolento: ele esta com sono, eis o que pensa; seu corpo tornou-se algo sopitado, doce, tranquilo: mole como um gato adormecido”. Entenderam do que estava falando quando usei a palavra “descoberta” para dar conta da minha reação ao ler o texto?
Um colega de turma, com bastante propriedade, apontou que era datado o trecho acima reproduzido, apesar da atemporalidade das reflexões do autor sobre a experiência do espectador de cinema presentes no ensaio. É verdade. Na era dos cineplexes, não há como sair do escuro profundo da sala de exibição e cair no silêncio de uma rua quase deserta, espaço perfeito para que o filme se entranhe, circule por nossas veias e artérias e se instale, latejando no cérebro.
Hoje somos desovados nos corredores hiperiluminados e por vezes abarrotados dos shoppings. Daí vem a fila para pagar o estacionamento e, às vezes, a absurda situação de ficar preso em um congestionamento antes mesmo de sair dos limites do centro de compras. E a coisa piora quando surge um conhecido pedindo um veredito imediato sobre o filme que acabamos de ver.
Ao ler Saindo do Cinema, fui tomado de súbita melancolia. Nostalgia de tempos idos, quase irresgatáveis. Felizmente, o prazer de meu tropeço em Barthes foi maior. Por um momento, que se estendeu por todo o dia, permiti que a sensação da descoberta se entranhasse e me embriagasse.