Assistir a Bojack Horseman é para mim uma experiência de entretenimento cômico das mais engraçadas e um sofrimento imenso. A série criada pelo insano Raphael Bob-Waksberg começa como uma animação de comédia para adultos clássicas, com piadas sobre drogas, bebidas e sexo, e aos poucos vai abraçando seu lado sombrio, que a cada episódio aflora mais. Bojack é um cavalo-celebridade de Hollywood que atuou na década de 90 em um clássico sitcom familiar de sucesso. Na meia-idade, com uma necessidade enorme de alimentar o próprio ego e sem conseguir nenhum trabalho e nem manter relações sólidas com ninguém, se dispõe a ser biografado na tentativa de recobrar parte da fama perdida. O que a princípio parece uma caricatura das relações superficiais do showbusiness aos poucos vai se revelando o retrato escancarado de uma depressão profunda, marcada por abusos psicológicos e excessos nada saudáveis para preencher um vazio que, nas palavras da mãe do cavalo, “é o seu direito de nascença”.
Mas talvez o que de mais significativo o seriado da Netflix tenha para oferecer além de um espelho doloroso para quem se encontra na mesma condição psíquica é evidenciar o mundo literal e a perda das sutilezas que experimentamos nessa pós-modernidade. Enquanto nos acostumamos a nos relacionar de longe com nossos colegas, via redes sociais, onde cada pessoa é uma ilha de moralidade em meio a um chorume social, de perto experimentamos a sensação de nos desnudarmos dos signos que criamos para sustentar uma certa personalidade construída.
O que a princípio parece uma caricatura das relações superficiais do showbusiness aos poucos vai se revelando o retrato escancarado de uma depressão profunda.
Todos os personagens da série são criadores de símbolos: são atores, escritores, apresentadores de TV, agentes, enfim, inventores de arquétipos que, conforme os episódios avançam, se mostram insuficientes para escorar as arestas da normalidade de cada um. Resta o literal, o cru. O famoso letreiro de Hollywood é só um símbolo, mas quando Bojack Horseman rouba o D da palavra para presentear sua paixão platônica Diane, a cidade passa a ser chamada de Hollywoo; o diretor do filme que Bojack está filmando diz em dado momento da série que não está fazendo nenhum Casablanca, e enquanto o ator equino acredita se tratar de uma figura de linguagem que explana a qualidade cinematográfica da obra, o cineasta é literal ao dizer que não estão filmando Casablanca porque Casablanca é um filme sobre outro assunto; Ethan Hawke é um hawk (um gavião), e um marlin chamado Brando (sim, Marlin Brando) serve Stella Artois gritando “Stella”, como o ator de Um Bonde Chamado Desejo; o orfanato que Bojack constrói em homenagem ao seu amigo Herb Kazazz se chama Jerb Kazazz por causa de um erro de digitação em um e-mail.
Não sobram espaços para simbolismos no pesadelo semiótico de Bojack Horseman. A percepção é acentuada pelo fato de que a série, ao mesmo tempo em que se apropria de elementos tipicamente ficcionais para montar sua bíblia, utiliza apenas desfechos dolorosamente reais para suas tramas, desprezando metáforas. A vida real é mais sutil em dizer que as sutilezas já se foram (no máximo, alguma charge de Carlos Latuff em que um policial aparece com um colete que diz “POLICIAL” dá a ideia mais escancarada da coisa), mas cobra da mesma forma o preço pelos signos falsos sob os quais vivemos. A depressão de Bojack é fruto da realidade idealizada confrontada com a realidade objetiva, e toda a escuridão dos outros personagens passam pelo mesmo caminho. E nós também, cada vez mais.