No segundo domingo de agosto muitos são os que passam o dia dos pais sem ele, ausência essa refletida pelo grupo Inquérito na música “Dia dos Pais”, em que o único presente possível é um buquê de flores deixado em um túmulo, mesmo ato que ocorre em um poema de Manuel Bandeira, mas em outra data: o dia de finados.
Esse é o dia tradicional em que os vivos lembram dos mortos e vão ao cemitério para vê-los. Mas também é o dia de os vivos se verem como mortos.
No “Poema de Finados” a morte e a vida, o pai e o filho se fundem e se confundem. Nele a presença da morte está não apenas naquele que está enterrado, mas também em quem ficou.
Essa identificação do sujeito vivo com aquele que se foi é visto por Davi Arrigucci Jr. em Humildade, paixão e morte, a principal obra que reflete sobre a poética de Bandeira, como uma antecipação da morte, um sentimento da morte em vida ou a sua oposição, como se a vida, em contato com a morte, fosse uma perda.
Por isso, no “Poema de Finados” o eu lírico apresentado por Bandeira retrata a morte de um pai que leva um filho consigo ao carregar não só as lembranças de um passado, mas também a possibilidade de um futuro não mais possível. Dessa maneira, talvez óbvia, o óbito é muito mais significativo e sofrido para quem fica do que para quem parte, uma vez que aquele que se vai leva consigo um pouco de quem fica, de quem herda o sofrimento e a amargura pela perda.
A visão de Manuel Bandeira, entretanto, não apresenta essa partida de uma maneira parcial, mas total. Na composição poética a vida do filho vai-se inteira com o pai ausente.
Poema de Finados
Amanhã que é dia dos mortos
Vai ao cemitério. Vai
E procura entre as sepulturas
A sepultura de meu pai.Leva três rosas bem bonitas.
Ajoelha e reza uma oração.
Não pelo pai, mas pelo filho:
O filho tem mais precisão.O que resta de mim na vida
É a amargura do que sofri.
Pois nada quero, nada espero.
E em verdade estou morto ali.(Manuel Bandeira, Libertinagem)
Esse ponto de vista é apresentado na primeira estrofe trazendo uma localização temporal e física. Na data, já anunciada no título, o eu lírico usa o modo imperativo para dar uma ordem que soa como indicação, conselho ou súplica para que uma pessoa vá até o cemitério prestar uma homenagem.
Lá, entre as diversas sepulturas deverá ser localizada a do pai, indicação essa que mostra uma aproximação da cena (Dia dos finados → cemitério → diversas sepulturas → sepultura do pai) que particulariza a figura paterna, indo do genérico ao específico. Entre todos aqueles mortos é o pai que realmente importa, é a ele que o eu lírico irá se ater.
Dedicando-se àquela sepultura, a segunda estrofe traz a indicação de como deve ser feita a homenagem póstuma-presente ao levar rosas, a flor da paixão, em três unidades, mesmo número de estrofes do poema.
Já a última parte se mostra como uma explicação de porque as flores e a oração devem ser levadas ao filho e não ao pai. Entretanto, embora haja uma continuidade no assunto há uma mudança significativa quanto a quem se fala e sobre o que se fala.
Se nas estrofes anteriores havia uma indicação a uma terceira pessoa, na última há uma reflexão sobre como o eu lírico se sente para que se considere como o morto, digno de condolências. Apesar da aparente subjetividade, o sujeito aparece fora da cena, falando sobre si sendo alguém exterior. “Estou morto ali” apresenta uma visão de fora para dentro sobre si mesmo, como uma alma que sai do corpo e olha para ele.
Essa exterioridade que define a subjetividade do sujeito é aquilo que Michel Collot define como “o sujeito lírico fora de si” em texto com o mesmo título.
Para o autor “Esses estados de alma estão tão profundamente escondidos na intimidade do sujeito que, paradoxalmente, não podem se revelar senão se projetando para fora”. É justamente esse elemento que está presente na poesia de Manuel Bandeira. Para definir-se, o eu lírico está fora de si.
Não é a sua subjetividade que o define, mas sim o exterior. É o dia de finados e a morte do pai que trazem a sua ipseidade, é um outro sujeito (o pai) que define a situação de uma pessoa que vive como morto.
Assim, é por meio da morte que o sujeito se define, da mesma maneira que se dá na música “Dia dos Pais”, mas enquanto no poema o filho se vai junto com o pai, na letra a ausência faz com que a cria assuma a responsabilidade que deveria ser do gerador (“Só que quando eu mais precisei, cadê? Cê não tava / Com treze anos virei o homem da casa / A mãe sofrendo, doente, vivia no hospital / Larguei a escola pra vender sorvete no Taquaral”).
Além de apresentar a assunção de um papel precocemente, o trecho em questão demonstra ainda o tom de lamento e revolta que está presente em toda a canção, que coloca o pai como responsável direto pela sua situação, que fez com que a ganância o levasse a entrar na criminalidade e no caixão.
Mas se no poema se fala a um terceiro, na música o filho conversa diretamente com o pai, uma pessoa que se foi, mas que ainda assim aparentemente é único com quem se pode conversar (“E o mesmo crime que te levo por dinheiro, ilusão / Veio te devolve num caixão com flor e algodão / Olha, desculpa se eu falei demais, se eu pesei, fui além / Eu precisava desabafa com alguém”).
Entretanto, mais do que conversar, o filho queria dar um abraço no pai, o que já não é mais possível, uma vez que tanto no poema de Manuel Bandeira quanto na música do grupo Inquérito a morte é um elemento de separação e de ligação, mas que só se dá por meio de flores.
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