Embora a televisão tenha deixado os Titãs burros, muito burros demais ali pelos anos 80, na década seguinte ela meio que salvou a minha infância e formou o meu caráter. Diria até que ela me deixou menos burro naquela época e qualquer déficit intelectual posterior foi culpa de outra coisa, falta de fazer palavras-cruzadas e tomar Biotônico Fontoura, talvez.
É meio estranho que em tempos de internet no celular ainda exista a ideia de um demônio da TV que manipula nossos frágeis cérebros em busca da dominação mundial, mas ok, ainda é mídia de massa e é sempre bom elaborar umas teorias da conspiração pra exercitar a imaginação e passar o tempo.
Sei também que quando alguma pessoa diz qualquer coisa num tom de “antigamente é que era bom” logo surge uma vontade incontrolável de dar um tiro de escopeta na cara dela ou de colocá-la numa máquina do tempo e despachá-la diretamente para uma época em que não existia saneamento básico, “agora caga aí no mato e limpa com urtiga, filho da puta”, mas devo dizer que houve uma época bem boa lá na terra do antigamente, não exatamente na minha vida real, mas ali naquela tela maligna tipo a que você tem no meio da sua sala. Essa época se chamava: TV Cultura dos anos 90.
Quando a sua infância não é exatamente um mar de rosas, a televisão vira uma espécie de bunker cognitivo e, no caso da Cultura, a programação era um verdadeiro oásis. A Rede Globo mantinha o seu inabalável reinado na Sharp 20 polegadas na sala de casa, mas no quarto que eu dividia com meu irmão nós tínhamos o prazer de desfrutar, tal qual dois marajás, de uma maravilhosa xing-ling de 5 polegadas em preto-e-branco (com rádio AM!).
Quando a sua infância não é exatamente um mar de rosas, a televisão vira uma espécie de bunker cognitivo e, no caso da Cultura, a programação era um verdadeiro oásis.
Foi diante desta TV que passei longos anos da minha não tão longa vida assistindo Castelo Rá-Tim-Bum, O Mundo de Beakman e Doug. Ah, como era verde o meu vale em preto-e-branco. Lembro-me até hoje da sensação boa que eu sentia, ali no meio de uma aula de matemática, de que tudo bem o dia ser horrível, pois à noite eu encontraria o Nino, o Lester e a Paty Maionese.
Ainda relembro com carinho de todos os personagens, pois eles realmente me ajudaram a passar por algumas fases meio ruins. É bem difícil que uma criança não se apaixone por cultura, em especial a literatura e a contação de histórias, após mergulhar por algumas horas naquele mundo maravilhoso comandado pelo Dr. Victor e pela tia Morgana. Assim como um piazinho de pouco mais de 10 anos dificilmente não começaria a se interessar pelo mundo das ciências a partir das experiências malucas do Beakman.
Aprendi muito com o Doug sobre essa coisa de se sentir meio perdido e tentar sobreviver ao colégio. Ok, talvez eu não tenha aprendido nada de muito concreto, mas eu me sentia menos sozinho, sabe? Nessa idade, algo assim tem o peso do mundo. Muito do meu gosto pela escrita, por exemplo, surgiu porque eu via aquele menino narigudo escrever em seu diário todas as noites antes de dormir. Eu queria um diário igual ao dele e a vida que eu escreveria ali também seria incrível.
Foi um choque para mim quando, anos depois, finalmente pude ver o desenho colorido e constatei que o Skiter, o melhor amigo do Doug, depois do cachorro Costelinha, realmente era azul. O cara era azul, como assim? Pra mim, o Skiter sempre será aquele magrelo em preto-e-branco com voz meio estridente, naquela TV minúscula cujo o volume eu aumentava demais, para não ter que ouvir as dores barulhentas da vida real, ali na sala ao lado. Ainda hoje, quando ouço a música de abertura, sou invadido por um sentimento que poderia ser só de nostalgia, mas que geralmente se aprofunda e vira calma, uma sensação boa de paz.
Enfim, essa visão de que a TV só serve pra emburrecer as pessoas pode ser meio ingênua e paranoica dependendo do ponto de vista, pois às vezes é apenas uma questão de aprender a usar o controle remoto. E nem precisa ser muito inteligente para isso, até os Titãs devem conseguir fazer isso hoje em dia.