Morei os primeiros catorze anos da minha vida em uma praia minúscula e isolada, encravada na divisa entre Paraty e Angra dos Reis, no litoral sul do Rio de Janeiro. O lugar, com 300 casas e pouco mais de 800 habitantes, é uma dessas vilas artificiais, construídas para funcionários da usina nuclear. Nossos pais eram todos engenheiros, físicos nucleares, biólogos, cientistas em geral, e nossas mães eram todas professoras ou donas de casa. Eram muito poucos os que conheciam outra realidade fora daquela praia. Pobreza, discriminação, violência, poluição, congestionamento, qualquer coisa que viesse como produto direto ou indireto da modernidade nos era estranho. Não era raro parar a aula para que todos pudessem ver um avião passando, e a primeira vez que vi uma porta automática foi com 14 anos.
O mar, por outro lado, que muitos passam a vida sem ver, era uma presença insistente na nossa pequena vila, e uma das únicas opções de entretenimento. Crescemos construindo castelinhos de areia, surfando, empinando pipa e jogando futebol na sua borda. A praia, limpa, deserta e com ondas bravias, era limitada à areia quando éramos crianças e estávamos sozinhos. Experimentei a fúria do meu pai e de outros pais aos sete anos quando, numa tarde, acabei indo dar um mergulho com um amigo sem aviso prévio. Os adultos temiam o mar porque era um dos poucos jeitos de morrer por ali, mas conseguíamos encontrar outros. Meu vizinho de dez anos ateou fogo no próprio corpo com uma garrafa de álcool tentando destruir um formigueiro (alguns anos depois morreu em um racha no Rio de Janeiro), um amigo teve a cabeça aberta em um corte profundo durante uma briga de escola na segunda série, e ainda houve um que botou fogo na própria casa com uma vela quando tinha menos de dez anos.
“Crescer naquela praia proporcionou momentos inesquecíveis: olhar pela primeira vez a vida marinha com óculos de mergulho, ver os golfinhos fazendo graça pela manhã no caminho para a escola, ver o céu quase toda noite coberto de estrelas que não são possíveis de serem vistas na cidade grande, tudo isso foi bom.”
Fora isso, e as brincadeiras de rua (o jogo conhecido em São Paulo como “taco” e em qualquer outra parte do mundo como “bete” ou “bets”, era o mais popular), não havia o que fazer. O comércio se restringe até hoje a uma padaria, um açougue, uma farmácia, um restaurante por quilo, um salão, uma loja de roupas, uma academia e uma lanchonete. O cinema e o hospital mais próximos ficavam a 12 quilômetros de distância, e se alguém quisesse ir a um McDonald’s deveria encarar uma viagem de duas horas e meia pelo menos. Éramos compelidos à natureza por motivos de força maior, mas gostávamos de videogames, luzes, efeitos visuais e coisas importadas. Meu pai, que mora lá até hoje, de vez em quando dirige 250 quilômetros até o Rio de Janeiro para passar o dia no Barra Shopping.
Crescer naquela praia proporcionou momentos inesquecíveis: olhar pela primeira vez a vida marinha com óculos de mergulho, ver os golfinhos fazendo graça pela manhã no caminho para a escola, ver o céu quase toda noite coberto de estrelas que não são possíveis de serem vistas na cidade grande, tudo isso foi bom. Mas hoje é difícil pra muitos de nós passar mais do que uma semana por ali sem morrer de tédio. Um dos meus amigos, o Paulo, sequer visita a casa do pai. Prefere esperar que ele vá visita-lo no Rio de Janeiro, onde há vida noturna. Uma vez tomado pelo ritmo da urbe, é difícil voltar ao marasmo daquela praia sem sentir a estagnação no tempo. Para outros, em contrapartida, é um alívio voltar para lá e poder pegar onda, ir de caiaque até alguma das ilhas próximas à orla ou fumar maconha todo dia sem se preocupar com nada além de botar a cerveja para gelar.
O que salva o resto da sanidade mental de nossos pais, hoje em vias de se aposentar, é a TV a cabo e a internet – maneiras de se conectar com o mundo mesmo vivendo em estado de isolamento constante. É o que fazem depois que chegam do trabalho. Ligam a TV e acessam a internet. A praia mesmo, quase ninguém vai. Enche o saco. Passamos o dia na internet e damos risada dos amigos que nos visitam no verão e dizem que poderiam morar ali facilmente, porque aquilo sim era um paraíso. Como diria aquela música do Talking Heads, se isso é o paraíso, amigo, então me dá um cortador de grama.