Se prestarmos atenção nas notícias que estampam os jornais nos últimos tempos, conseguimos ter uma ideia aonde o Brasil dos próximos anos vai parar. Impunidade é palavra de ordem, esquecimento também está na moda, pois as notícias esdrúxulas são tantas que fica difícil acompanhar. Porém, um tema está rolando bem por baixo dos panos, mas pode nos afetar de um jeito que não terá volta: o fundamentalismo religioso. Há um plano descarado de poder capitaneado pela bancada da Bíblia que infesta o Congresso Nacional, e o MBL está dando força para que os desavisados ergam os punhos contra a arte em nome de fingidos bons costumes.
Ao mesmo tempo, o país é o número dois em acessos a vídeos pornográficos com travestis, como aqueles feitos pelo ex-ator que hoje posa de moralista. Hipocrisia seria um eufemismo. Os bastiões da moral, encastelados, mandam e desmandam em uma classe média que se acha rica e defende que lugar de pobre é na rodoviária. E os pastores e malucos que grassam por aí – e seus asseclas que fazem uma verdadeira lavagem cerebral nos seguidores – defendem a cura gay, o fim das cartilhas sexuais educativas, o extermínio de programas de apoio à diversidade nas escolas. Um perigo que se agiganta, mas como está por baixo dos panos, muita gente não se dá conta de que ele é muito real.
Ninguém nasce, mas pode ser
E foi exatamente essa ferida que Eric Novello, conhecido autor nacional de fantasia adulta, resolveu cutucar com Ninguém nasce herói, que saiu há pouco pela Editora Seguinte. Em seus livros anteriores, todos adultos, Eric sempre lidou com diversas facetas da sexualidade, levando seus personagens a passeios pela boemia carioca (como em Neon azul, Editora Draco) e também a uma cidade fictícia que tem um pouco de Rio de Janeiro, um pouco de São Paulo, a Libertá de Exorcismos, amores e uma dose de blues (Gutenberg). Agora, Eric parte para outros rumos, arriscando o que se convencionou chamar de young adult, ou literatura para jovens adultos. Mas como uma questão bastante atual: e se o Brasil fosse governado por um presidente fundamentalista cristão?
Engraçado que, quando soube do tema do livro, lembrei de uma entrevista do escritor Fernando Bonassi para o GloboNews Literatura que me marcou muito (faz bastante tempo). Revirei a internet para encontrá-la, mas não achei, então, se alguém tiver esse depoimento em algum lugar, me dê um alô. E pode não ter sido o Bonassi, mas tenho 99% de certeza de que foi ele, sim. Em uma parte da entrevista, diz com todas as letras que o Brasil estaria à época se transformando em uma república fundamentalista cristã. A entrevistadora ficou com uma cara de espanto, mas hoje talvez ela também se lembre dessas palavras. Com outra cara de espanto, suponho. Pois o plano de poder está sendo arquitetado há muito, e agora quem o esquematizou está pondo as asinhas de fora.
O livro não tem uma época definida, mas pelas descrições de lugares, ambientes e tecnologias, pode ser amanhã. Pode ser daqui a um, dois, cinco anos.
Chuvisco em terra que não garoa mais
Em Ninguém nasce herói conhecemos Chuvisco, um jovem tradutor recém-formado de São Bernardo que se muda para São Paulo e vive sua vida normal, a não ser por um porém: ele convive com episódios de catarse criativa, quando sua imaginação acaba tomando conta e fazendo com que fantasia e realidade se confundam. Em geral, em situações de estresse acentuado, o rapaz acaba imaginando outros mundos dentro do nosso, o que pode gerar – e gera – problemas de muitas ordens. As catarses estão de certa forma controladas depois de anos de terapia, mas de qualquer maneira elas pintam aqui e ali, dando às vezes um colorido à vida do rapaz, em outros momentos colocando-o em risco.
Mas nada que o isole demais, pois ele acaba fazendo uma turma bacana de amigos: Cael e Amanda, Gabi, Pedro e Dudu. E eles acabam ficando ainda mais próximos, pois todos estão no mesmo barco; não concordam com os mandos e desmandos do governo autoritário, temem uma escalada de violência e uma tomada de poder por parte da Guarda Branca, uma espécie de milícia religiosa que apavora minorias e afins. Entre uma ou outra ação “subversiva”, eles vivem sua vida, se divertem, namoram. Mas um fato, desencadeado por Chuvisco, vai mudar a rotina de todos.
Pacto de Convivência
O livro não tem uma época definida, mas pelas descrições de lugares, ambientes e tecnologias, pode ser amanhã. Pode ser daqui a um, dois, cinco anos. A questão é que Eric, em suas pesquisas, conseguiu retratar apenas o próximo passo se não começarmos a nos mexer agora. Os acontecimentos do livro, desde a violência gerada pela intolerância com as minorias, os grupos religiosos que começam a quebrar templos e locais de culto de religiões minoritárias, em especial as de matriz africana, até a negação da arte e sua censura estão aí, explícitos. O livro foi escrito bem antes dos episódios do Queermuseum (clique aqui), do episódio do livro de ciências banido por ter uma parte “explícita” de educação sexual (clique aqui), mas provavelmente ainda estava em processo de escrita quando Fernando Holiday invadiu escolas para supervisionar uma suposta doutrinação e outros eventos terríveis estavam em curso.
No livro, podemos dizer que toda questão já está consumada: por meios escusos, o Escolhido chegou ao poder, causando uma espécie de “revolução cultural” no país. A Bíblia torna-se a referência máxima, o estado laico vai pelo ralo, e resta à população que não se encaixa nos padrões se defender como pode. Porém, o povo não se dá por vencido, e a violência cresce entre grupos pró-liberdade e os apoiadores do governo, o que leva o mandatário a decretar um Pacto de Convivência, um dispositivo que “decreta o fim da perseguição a minorias, inclusive religiosas, e retoma o direito à liberdade de expressão dos opositores”. No entanto, esse pacto de pouco adianta no caos que já está instalado; os fundamentalistas continuam atacando aqueles que são contra “Deus e o governo cristão”, e os contrários a essas ideias ficam cada vez mais acuados.
Santa Muerte
Como toda boa distopia que se preze, há um grupo organizado que busca por fim aos mandos e desmandos do governo autoritário. Em Ninguém nasce herói, esse grupo é simbolizado pela morte mexicana, a Santa Muerte, uma imagem que acaba invadindo as catarse criativas de Chuvisco. Ou será que não? Será que não é a manifestação da própria Muerte trazendo recados valiosos ao rapaz?
De qualquer forma, ela começa a ser presença constante no livro depois que Chuvisco salva Júnior, um garoto trans que estava prestes a ser morto pela Guarda Branca. Em meio a uma catarse criativa, Chuvisco consegue tirar o rapaz de perigo. Cada um toma seu rumo, mas Chuvisco fica com a imagem de Júnior na cabeça e transforma em uma pequena obsessão. Precisa saber se ele está bem, se nada mais aconteceu com ele. E sua noite de herói acaba lhe trazendo muitos hematomas, dores e um bando de fanáticos como perseguidores.
As várias camadas dos amigos e do que senti falta
As personagens do livro de Eric são um caso à parte. Uma das partes difíceis da criação são as personagens, sua profundidade. E tanto Chuvisco – sendo ele o narrador – como seus amigos são cheios de camadas, de segredos e jeitos, de coisas que estão muito além do texto, nas entrelinhas. Parece algo meio óbvio para qualquer livro de ficção, mas não é. Às vezes, um livro pode ser bom, bem bom, mas falta às personagens nuances que as tornam mais reais. Claro que em Ninguém nasce herói algumas são mais profundas que outras, mas todas são bem-construídas. Pedro e Gabi para mim são os mais completos, mais cheios de camadas, o que faz com que nos afeiçoemos a eles. Talvez seja de propósito, pois são os mais próximos de Chuvisco. Amanda também é muito bem-construída. Enfim, a construção das personagens é um dos pontos altos do livro.
Já a reta final do livro me deixou um pouco com gosto de quero mais. Não senti falta de mais ação, e sim de mais história, mais recheio. Essa, claro, é uma opinião pessoal e intransferível, muita gente provavelmente vai achar que fechou redondo, mas eu senti falta de desfechos. Não estou falando de um final fechado, que eu não curto muito, mas sim de desfechos para um ou outro personagem. Também o “lado de lá” virou apenas um inimigo sem rosto, o que se explica pela perspectiva do livro (em primeira pessoa de um opositor ao governo), mas acho que mereceria um pouco mais de desenvolvimento, até para que o contraste ficasse ainda mais explícito para o leitor.
Que todos os jovens tenham acesso à obra e que muitos adultos também deem chance a Ninguém nasce herói, pois em tempos como os nossos, nos quais a violência fala mais alto, em que a comunicação não violenta ainda não é realidade em nossas trocas, em que os discursos de ódio grassam nas redes sociais em uma polarização medonha, uma voz corajosa como a de Eric precisa ser ouvida. E que os pais mais quadrados não barrem o acesso de seus filhos ao livro, pois a médio/longo prazo esse terá sido um desserviço para o Brasil.
NINGUÉM NASCE HERÓI | Eric Novello
Editora: Seguinte;
Tamanho: 384 págs.;
Lançamento: Julho, 2017.