No mundo, pouca gente sabe onde fica Kamuvu. Mas na República Democrática do Congo, [highlight color=”yellow”]país onde a prática do estupro virou arma de guerra e a cada hora 48 mulheres sofrem violência sexual[/highlight], segundo dados da American Journal of Public Health, a pequena vila de Kamuvu ganhou uma triste fama após uma milícia de 18 homens ser acusada de ter violentado dezenas de garotas entre 2013 e 2016.
Raptadas de suas famílias, as meninas eram brutalmente estupradas e depois largadas à própria sorte. A violência foi motivada pela crença de que o sangue de meninas virgens dá poder contra tiros e melhora a saúde. Pela primeira vez na história do Congo, um caso como esse chegou aos tribunais e houve uma prisão em massa por conta de estupros, segundo informações divulgadas pela BBC Brasil no dia 18 de novembro.
Enquanto mulheres do mundo todo continuam levantando suas bandeiras por respeito, igualdade de gênero e pelo fim do feminicídio, entre outras pautas de suma importância, casos como o da vila de Kamuvu, no Congo, continuam dilacerando a existência de milhares de meninas e mulheres, vítimas extremas da misoginia e do machismo. E enquanto algumas pessoas dizem não entender “o que querem as mulheres, com tantas passeatas, tantas camisetas, reivindicando novas liberdades”, exatamente como questionou Danuza Leão este mês, em sua coluna de estreia no jornal O Globo, outras conseguem libertar-se de matrimônios forçados através da música, ferramenta de denúncia e um grito de socorro.
Exatamente este foi o caso da rapper afegã Sonita Alizadeh, que aos dez anos de idade ouviu de seus pais: “Nós temos que vendê-la como noiva”. Eles começaram a comprar roupas melhores, maquiá-la e cuidar melhor dela do que antes. A família precisava do dinheiro do futuro marido de Sonita – um homem obviamente bem mais velho e que pagaria oito mil euros pelo direito de casar-se com a menina – para, por sua vez, comprar o dote de uma noiva para o irmão de Sonita.
Com dez anos, uma criança pode não entender bem o que isso significava, mas a primeira tentativa de um matrimônio arranjado para Sonita não deu certo. O país estava em guerra e logo ela foi levada para viver em um campo de refugiados no Irã. Aos 15 anos, sua mãe chegou com a notícia de que “felizmente” haviam encontrado um outro marido que queria comprá-la. Sonita disse não. A essa altura a garota já compunha algumas letras de canções sobre violência, guerra, opressão e direitos das mulheres.
Com ajuda da documentarista iraniana Rokhsareh Ghaem Maghami, responsável por dirigir um filme sobre a história de vida de Sonita, ela gravou o clipe ”Brides For Sale” (veja abaixo), vestida de noiva com um código de barras na testa e recitando versos como: “Tenho 15 anos, sou de Herat, alguns homens me propõem em casamento, estou confusa e chocada, estou confusa e chocada por causa dessas pessoas e da tradição matrimonial, eles vendem meninas sem direito de escolher”.
O clipe foi para o YouTube e instantaneamente se tornou viral. [highlight color=”yellow”]Sua voz automaticamente se conectou com o restante do mundo chamando atenção para o seu o próprio destino[/highlight], que acabou mudando radicalmente, e para a realidade de milhares de meninas do mundo todo que são tratadas como objetos e vendidas para casamentos forçados antes mesmo de completarem 18 anos de idade. Dentro de sua própria família, a rapper foi responsável por uma considerável mudança. Sua irmã mais nova já não é pressionada para um casamento como ela mesma e outras duas irmãs foram durante a infância e adolescência.
O Les Amazones d’Afrique defende que a música pode desencadear imensas mudanças e é uma arma para enfrentar problemas sistemáticos de gênero em toda a África.
Na África Ocidental, outras vozes estão literalmente abalando estruturas sociais. O supergrupo feminista Les Amazones d’Afrique, formado por dez notáveis artistas dessa região africana – incluindo estrelas internacionais, grandes nomes locais e cantoras em ascensão – enfrenta desigualdade de gênero com uma poderosíssima expressão musical.
O coletivo combina ritmos antigos e tradicionais africanos com pegadas afrofuturistas, toques de funk e dub, e suas letras abordam a opressão, o amor e a força feminina. Todas as músicas são cantadas em inglês, francês e mandinka, língua de um grupo étnico de mais de 11 milhões de pessoas na África Ocidental, especialmente no Mali.
O Les Amazones d’Afrique defende que a música pode desencadear imensas mudanças e é uma arma para enfrentar problemas sistemáticos de gênero em toda a África. Elza Soares que o diga, após conquistar uma atenção massiva da sociedade brasileira para a violência doméstica através de um dos maiores trabalhos de sua extensa carreira, o disco A Mulher do Fim do Mundo, de 2015.
Já o disco République Amazone, de Les Amazones d’Afrique, que foi lançado em março deste ano e tem tudo para ser eleito um dos melhores do ano, é como o som da diáspora africana voltando para casa com mais igualdade de gênero, como caracterizou o The Guardian. Embora existam algumas sociedades matriarcais na África Ocidental, [highlight color=”yellow”]os homens ainda detém poder sobre a vida e o livre arbítrio de milhares de mulheres[/highlight], como no infeliz caso citado logo no início deste texto. Les Amazones d’Afrique, bem como Sonita, Elza, Nina Simone e tantas outras, vieram para gritar com muito estilo e personalidade pelo fim da violência contra as mulheres.