“Após 150 anos, identidade de modelo de obra escandalosa é descoberta.” Apesar da péssima chamada, a reportagem d’O Globo cumpriu seu papel quando informou que, segundo especialistas, a genitália retratada em “A Origem do Mundo”, de Gustave Courbet, em 1866, seria da dançarina Constance Quéniaux.
Até então, nenhum problema, certo?! Modelo encontrada, fato documentado, jornalismo exercido. Errado! Após publicada a matéria, comentários incrédulos com a possibilidade de uma genitália feminina ser considerada como arte não demoraram a aparecer.
Ao visualizar a indignação dos internautas, questionei-me por que, 150 anos depois, as pessoas ainda se chocam e ridicularizam a nudez?
Quando uma criança tocou em um homem nu, durante uma performance artística, muito se questionou sobre o que é arte e qual seu papel na sociedade, adultos ficaram revoltados com a possibilidade de um pequeno ser humano ter ao alcance dos olhos e mãos as partes íntimas de um outro ser humano e foram para as redes sociais esbravejar o quão criminoso foi o ato.
Sem entrar em muitas questões, pergunto-me, “em que momento a arte tornou-se sinônimo apenas daquilo que é belo?” Pois, ainda que minhas notas em História da Arte não tenham sido das melhores, lembro de existir também uma característica fundamental em seu papel: o de questionar.
Uma vez que vejo uma onda de pseudo críticos modernos que recriminam tudo e qualquer manifestação cultural que lhes desagrade, mas aplaude a reprodução meramente comercial de uma música ou imagem.
Em que momento a arte tornou-se sinônimo apenas daquilo que é belo?
Será que quando esculpiu os mais de cinco metros de David, em 1504, Michelangelo também foi acusado de insultar a imaculada moral e os bons costumes da família tradicional da Itália? E Donatello?
O que falaram da nudez de seu David, que pretensiosamente leva a mão na cintura, enquanto embaixo de seu corpo nu massacra a cabeça de Golias. Já está mais que claro que a nudez acompanha não somente a história da arte, como também a sociedade onde está concentrada, a qual apenas modifica seus critérios de aprovação a cada geração, afrouxando ou apertando de acordo com a cultura local.
Mas ainda que tivessem esculpido corpos nus, Michelangelo e Donatello não pretendiam contestar nenhum padrão imposto naquelas sociedades; com o passar do tempo e surgimento de novas possibilidades, a nudez associada à arte ganhou mais um instrumento, as performances (como a questionada em 2017).
Em 1977, Marina Abramović fez pessoas questionarem seus próprios tabus ao retirar suas roupas junto às do parceiro, de modo que para entrar no museu era preciso passar pelos dois corpos parados ali sem roupas; a não ser que passasse de olhos fechados, os veria.
Se no Brasil políticos criam maneiras de barrar a entrada de menores de idade em exposições, na França, o Museu d’Orsay utilizou a frase “tragam seus filhos para ver gente nua” como um dos slogans de relançamento de uma campanha de incentivo de visitação, a qual foi bem aceita pela população.
Enquanto corpos continuarem envoltos pelos mantos dos tabus, a arte continuará o questionando e colocando-o em evidência, não porque artistas são mentes sujas e depravadas, mas porque um corpo pode ser também só um corpo.
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