Finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018 na categoria “Melhor Livro do Ano” para autores estreantes com mais de 40 anos, Correr com Rinocerontes foi o primeiro romance escrito por Cristiano Baldi, que já lançou uma coletânea de contos chamada Ou clavículas. Publicado pela Não Editora em junho do ano passado, o romance narra a história de um protagonista sem nome que é chamado às pressas pelos avôs para voltar para Porto Alegre, sua cidade natal, depois de um acidente com sua mãe. A não-revelação do acontecimento sugere algo grave e constrói um clima de suspense permeado por digressões temporais. Esses flashbacks acabam retratando outro acidente grave cujo protagonista foi seu irmão Igor, que tem deficiência mental.
O segundo acidente é um importante eixo da história. Foi ele que transformou a vida da família até o momento presente. O protagonista narra como, depois do acidente no hotel, as personagens da família começam a derrubar suas estruturas. A primeira delas é a mãe, que entra em uma espécie de estado catatônico. Sua avó intensifica sua religiosidade, beirando o fanatismo. O avô, que se pauta pela sua racionalidade, aos poucos se entrega a surtos de agressividade.
O protagonista faz um caminho inverso. Partindo de sua fuga para São Paulo, torna-se mais presente e participativo. Em uma das cenas do livro, um homem esculpe o rinoceronte e sugere o simbolismo que o animal carrega no título: a sua potencialidade e força avassaladora, descontrolada. O rinoceronte aparece, como Baldi escreve, como “alguma coisa, um animal primordial, o animal que nos conduziu até aqui, fazia com que lutar fosse a única opção”.
No entanto, para o personagem principal, essa visão de potência fica sempre no campo do poderia ter sido, mas não foi, como fica claro no seguinte trecho: “Eu não pude ficar parado mais uma vez, fingindo que a coisa não era comigo. Eu jamais incorreria na estupidez de dizer que aquele era afinal o momento da epifania, o momento em que eu me pus em movimento e que agora eu correria com os rinocerontes. Naquele instante eu apenas tinha que fazer algo, porque de alguma forma aquele instante incorporou os outros instantes desde que cheguei a Porto Alegre”.
Em entrevista no Café com Letras, Cristiano Baldi falou descreveu essa personagem como alguém sem um arco dramático, alguém que não sofre transformação ao longo da história. E isso fica claro durante a leitura: o protagonista é alguém repleto de potências, mas fica estagnado. Jonatan Silva chegou a comentar um pouco sobre isso aqui na Escotilha em “Cristiano Baldi cria romance de formação da geração Y”.
No ensaio reflexivo que teve de entregar junto do romance como parte da pesquisa de mestrado, Baldi comentou um pouco sobre o papel do rinoceronte na narrativa. Na primeira versão do livro, que começou a escrever em 2007, “a narrativa realista era então entrecortada por trechos fantásticos, em que rinocerontes invadiam uma metrópole e transformavam o narrador também em rinoceronte. Ele então se juntava à manada e invadia outras metrópoles e outras pessoas eram transformadas em rinocerontes”.
Ainda que a presença do rinoceronte tenha sido retirada quase que por inteiro e tenha permanecido apenas o resquício de algo sentimental, segundo o relato de Baldi, a impressão que fica é a da força descontrolada e sem rumo de um estouro de manada. Além disso, no mesmo texto, Baldi comenta sobre como ele imaginava o livro como uma espécie romance de formação que foi se dissolvendo ao longo das versões reescritas.
“Eu pensava, até então, que se tratasse de algo como um romance de formação, um livro sobre se tornar homem no mundo contemporâneo, em meio a uma suposta crise da masculinidade. A ausência de um pai para o protagonista me levou a insistir na hipótese e a acreditar nisso durante alguns meses”.
É interessante notar que tal impressão surge em alguns momentos da leitura e que talvez ela seja a causa de alguns incômodos que surgem em relação ao personagem durante a leitura até o seu desfecho anticlimático.
Existe uma possibilidade de a estagnação ser uma troça com o narrador brasileiro, também. Como abordado em outros textos, como em “Daniel Galera e o amadurecimento de uma crise” e em “Fantasmas no Labirinto”, os narradores brasileiros passam por um momento de questionamento e em Correr com rinocerontes a questão é tratada com um certo cinismo. Um exemplo são as cenas em que se discorre longamente sobre a masturbação masculina que dialogam com as críticas que Cristiano expõe sobre esse tipo de narração em outro momento do livro:
“Na discussão em sala de aula, a colega responsável pelo seminário estava enojada, vociferando contra o autor e os contornos de cânone que vinha adquirindo frente a alguns críticos, sobretudo os americanos. — Estou cansada dessa literatura de pau e porra — disse, tremendo os lábios e esticando o pescoço fino, como se desafiasse os homens da turma e o próprio professor, que, coitado, era tão velho que há alguns anos não devia ver nada que não fosse urina, e eventualmente sangue, sair da própria uretra. — É só pau, pau, pau, pau, pau, pau e mais pau”.
CORRER COM RINOCERONTES | Cristiano Baldi
Editora: Não Editora;
Tamanho: 288 págs.;
Lançamento: Junho, 2017.