Chama-se paródia, em música erudita, aquilo que no rap é precedido pela diss. Não me levem a mal, falo aqui de uma paródia legítima, seja ela em que tom for. O que é imutável, nesse caso, é a intenção, e daí a minha aproximação com o rap: uma zoeira de leve com um colega ou adversário musical. A provocação que termina relações amistosas ou que acentua as diferenças é uma longuíssima tradição musical que consiste, em música, de rir do outro também utilizando a música.
Debussy foi levemente ferino com o Tristão wagneriano em sua suíte Children’s Corner ao assimilar a dramaticidade romântica do alemão em seu prelúdio ao primeiro ato ao ragtime burlesco de sua época; Tchaikovski tripudiou sobre a Marselhesa em sua Ouverture 1812 para comemorar a vitória eslava sobre as tropas de Napoleão Bonaparte; Mozart, o prodígio, riu de todos os incompetentes, segundo a lenda, com o seu Ein musikalischer Spaß, e por aí vai. Eis que chegamos a Bartók e o Intermezzo para seu Concerto para Orquestra, peça que assisti na manhã de ontem no Teatro Guaíra. O húngaro não faz cerimônia nenhuma para rir em voz alta na cara de Dmitri Shostakovich, seu contemporâneo e grande divergente quanto a intenções musicais.
Chama-se paródia, em música erudita, aquilo que no rap é precedido pela diss. Não me levem a mal, falo aqui de uma paródia legítima, seja ela em que tom for. O que é imutável, nesse caso, é a intenção, e daí a minha aproximação com o rap: uma zoeira de leve com um colega ou adversário musical.
Bartók, que se mudou para os Estados Unidos fugido da Segunda Guerra Mundial e para quem a música de fundo ideológica era abominável, humilha a sétima sinfonia do russo, aquela composta em homenagem à resistência de Leningrado ao totalitarismo nazista. Para me ajudar na descrição da bufonaria, o amigo Fernando Severo, parceiro desse tipo de programa que até hoje jura de pé junto que música erudita é algo que eu só finjo gostar, me aponta uma passagem no livro Irony, Satire, Parody and the Grotesque in the Music of Shostakovich: A Theory of Musical Incongruities, da professora Esti Scheinberg.
Descreve ela que as barras 75 a 84 e 96 a 113 na peça de Bartók citam e distorcem a música de Shostakovitch, “tendo na segunda citação um exagero em cima da própria distorção”. Entre as duas citações, conta ela, há quatro elementos usados para rir do russo: um acorde cadencial errado, um trinado fortíssimo depois de um intervalo em uma segunda maior, um tremor nos violinos acompanhado pelas flautas e dois longos glissandi dos trombones, para daí dar lugar à segunda citação mais distorcida. Traduzindo o linguajar técnico: Bartók toca o tema de Shostakovitch de maneira alegrinha, há uma virada, os violinos dão uma risada, as flautas também, os trombones dão um peido, os violinos voltam a dar risada e a Leningrado descamba numa musiquinha vagabunda de carrossel de quermesse. É a maior afronta de que tenho notícia no gênero, e olha que Bartók é, todo ele, um piadista irreverente que nunca deixou de rir dos formalismos de seu meio.
O que no rap é motivo para uma sequência interminável de divertidas trovas e troca de ofensas, na música erudita é apenas isso: um momentinho, na própria composição, para lembrar que rir e fazer rir faz parte de qualquer grande arte e que se levar a sério é a ruína mais rápida para os colossos. Trinta segundos, fora as citações, servem para alimentar a arte da rivalidade entre pares na peça de Bartók, que morreria dois anos depois (Shostakovich viveu até a década de 70). Não sei se Shostakovich se empenhou em fazer uma diss ao compositor morto, mas que deve ter ficado puto da vida, isso deve.