No excelente A Semente do Fruto Sagrado, produção alemã que disputa indicação ao Oscar de melhor filme internacional, o juiz Iman (Missagh Zareh) personifica a rigidez do poder estatal e a fragilidade da autoridade patriarcal no Irã. Como responsável por decisões severas no Tribunal Revolucionário Islâmico, sua supremacia é abalada quando uma arma sob sua guarda desaparece misteriosamente.
A recusa da família em admitir envolvimento intensifica sua paranoia. Pressionado pela onda de protestos do movimento “Mulher, Vida, Liberdade” e encarregado de assinar sentenças de morte, Iman vê sua autoridade desmoronar quando percebe que suas filhas, criadas sob rigorosos preceitos religiosos, simpatizam com as mulheres que desafiam o uso obrigatório do hijab.
A fronteira entre seu papel de juiz e sua vida familiar rui de vez ao suspeitar que sua filha mais velha o encara de outro carro, com cabelos soltos, maquiagem e tatuagens visíveis — a personificação de seus piores temores. O longa-metragem se desenvolve como um thriller político impregnado de terror psicológico e resistência, refletindo a coragem das mulheres iranianas.
Filmado clandestinamente no Irã e concluído na Alemanha, o diretor Mohammad Rasoulof fugiu do país para escapar de uma nova prisão imposta por sua crítica ao regime. A narrativa se ambienta na Teerã do outono de 2022, em meio aos protestos deflagrados pela morte de Jina Mahsa Amini, detida pela polícia religiosa por uso inadequado do hijab. A versão oficial de que Amini sofreu um ataque cardíaco não convenceu os manifestantes, que tomaram as ruas em busca de liberdade.
Ao inserir imagens reais dos protestos, Rasoulof reforça a perspectiva das mulheres iranianas que lutam por direitos básicos, desafiando a ideia de que vaidade ou liberdade de expressão ameaçam a moralidade.
Inicialmente, o filme apresenta o cotidiano de Iman, recém-promovido a juiz de crimes contra o Estado. A mudança para um apartamento maior simboliza o aumento de status, mas também impõe à família uma disciplina inflexível. Najmeh (Soheila Golestani), sua esposa, reforça a necessidade de conduta exemplar às filhas Rezvan (Mahsa Rostami) e Sana (Setareh Maleki), proibindo qualquer comportamento que ameace a reputação familiar. No entanto, a aproximação das jovens aos protestos, incentivada pela amiga Sadaf (Niousha Akhshi), expõe o crescente abismo geracional e ideológico.
Com o desaparecimento da arma, Iman mergulha em um estado paranoico. Ele passa a desconfiar das próprias filhas, interroga-as, revira seus pertences e tenta colocá-las uma contra a outra, replicando dentro de casa os métodos opressivos que aplica no tribunal. Rezvan e Sana, porém, resistem e desafiam sua autoridade, ampliando o conflito familiar.
‘O Segredo do Fruto Sagrado’: imagens reais
Mohammad Rasoulof aprofunda a reflexão sobre a tensão entre obediência ao Estado e o custo pessoal dessa submissão. Assim como em Não Há Mal Algum, ele retrata homens que, ao cumprir ordens, se tornam engrenagens de uma máquina opressora. Em O Segredo do Fruto Sagrado, vencedor do Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes 2024, essa crítica é ainda mais contundente: a tradição patriarcal e a rigidez religiosa consomem a juventude, tal como a figueira sagrada — planta invasora que dá título ao filme.
Ao inserir imagens reais dos protestos, Rasoulof reforça a perspectiva das mulheres iranianas que lutam por direitos básicos, desafiando a ideia de que vaidade ou liberdade de expressão ameaçam a moralidade. Rezvan e Sana vocalizam o desejo por autonomia e confrontam o pai com questionamentos sobre justiça e dignidade humana. Quando Iman agride Najmeh, a violência doméstica se revela como extensão da brutalidade estatal, explicitando a conexão entre opressão pública e privada.
Mesmo nos momentos de ironia, como a decoração do escritório de Iman com imagens de mártires e prisioneiros vendados, o filme denuncia a complacência com a tirania. Essa conivência não só assegura a sobrevivência desses homens, mas também prenuncia sua inevitável ruína.
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