Na segunda-feira passada (30 de março), o tradicional programa Roda Viva, da TV Cultura, conseguiu um feito e tanto: marcou um ótimo nível de audiência para a emissora, a melhor atingida desde julho de 2018 (superando um outro programa de bastante visibilidade, a entrevista com Sergio Moro, enquanto ainda era juiz da Lava Jato), além de ter atingido, em pouquíssimo tempo, 1 milhão de visualizações no canal de YouTube da emissora. O feito, como era de se esperar, foi bastante celebrado pela TV Cultura, que é uma emissora pública.
Há vários fatores que podem explicar esta subida da audiência. Dentre eles, o fato de que atravessamos um período de quarentena mundial, obrigando que quase todo mundo esteja em casa (consequentemente, há um aumento na audiência da televisão, algo já documentado em outros canais). Outro fator é o tema, que era justamente a pandemia de Coronavírus, tema de forte interesse público e de implicações diretas na vida de toda a população. Mas nesta análise, gostaria de me debruçar sobre um terceiro elemento, que é o convidado deste programa e, portanto, um dos responsáveis por trazer esta audiência à televisão.
O entrevistado do Roda Viva foi o biólogo Átila Iamarino, doutor em microbiologia pela USP. Portanto, trata-se do que no jornalismo chamamos de uma fonte especializada, de alguém “autorizado” a falar com propriedade de certo assunto, uma vez que dedicou parte de sua vida profissional e pessoal a investigar um tema. No entanto, Átila traz consigo uma especificidade: diferente da maior parte das fontes científicas, vinculadas a instituições de ensino, ele é conhecido do grande público por causa de seu canal de YouTube, chamado “Nerdologia”, que conta com quase 3 milhões de inscritos.
Átila é, portanto, um youtuber – mais especificamente, um youtuber de divulgação científica (há quem já use a expressão “edutubers” para definir este tipo de produtor de conteúdo – professores e/ou pesquisadores que usam plataformas para divulgar vídeos de caráter educacional). Ou seja, não é um especialista qualquer, mas alguém já familiarizado às lógicas do mundo digital. Tem clareza, poder de síntese, capacidade de criar empatia e de estabelecer um vínculo com seu público – características, como se pode notar, de todo bom youtuber.
Pode-se dizer que o Roda Viva é, possivelmente, o mais tradicional programa de entrevistas da TV brasileira. Existente há 33 anos (o primeiro programa data de 1986), o programa é literalmente uma “roda” em que um entrevistado, sentado em uma cadeira giratória, responde a perguntas de entrevistadores variados. A ordem é a de que haja ali um diálogo sério, com perguntas sisudas feitas por convidados efetivamente especializados no tema do programa. Não por acaso, entre altos e baixos, é um programa que consolidou boa reputação entre os profissionais.
Se tradicionalmente imaginava-se a TV enquanto um universo próprio, já há indícios em muitos lugares – e o Roda Viva é mais um deles – de que esse espaço hegemônico antes ocupado pelo veículo já encontra negociações com outras plataformas.
Na entrevista com Átila Iamarino, parece-me haver uma espécie de marco: um programa tradicional como o Roda Viva “curva-se” a um nome cuja popularização se deu via internet (é possível inferir que, noutro momento histórico, talvez Átila não seria convidado). Obviamente, é um caminho que não ocorre apenas na TV Cultura – basta lembrar, por exemplo, que a atual edição do Big Brother Brasil trouxe pela primeira vez um cast de celebridades, a maior parte delas vindo da internet e não dos chamados veículos tradicionais.
Se tradicionalmente imaginava-se a TV enquanto um universo próprio, já há indícios em muitos lugares – e o Roda Viva é mais um deles – de que esse espaço hegemônico antes ocupado pelo veículo já encontra negociações com outras plataformas. As vantagens dessa abertura a nomes vindos da internet são várias. Uma delas, por exemplo, é que essas celebridades do mundo digital – como o próprio Átila, mas outros youtubers, como Felipe Neto – conquistaram seu público de forma muito mais orgânica. Já as celebridades televisivas são constituídas por uma espécie de “monopólio”: as poucas pessoas que conseguem algum espaço em poucas emissoras.
O alto número de audiência do Roda Viva evidencia então que a televisão, ao tirar proveito destes nomes, parece fazer um bom negócio – estende suas visualizações para o mundo digital e pode, inclusive, apresentar a sua programação para as novas gerações. Possivelmente o programa com Átila Iamarino chegou em jovens e velhos espectadores que nunca haviam sintonizado na TV Cultura.
Por fim, um adendo: também chama a atenção que a fala bastante respeitada de um doutor em Biologia tenha encontrado visibilidade não por instituições de ensino, mas por um canal de YouTube. Isso pode trazer pistas, por exemplo, sobre o possível futuro da pesquisa no Brasil: talvez tenhamos cada vez mais pesquisadores independentes que encontrarão outras maneiras não apenas de divulgar seus estudos, mas de sobreviver, por meio das plataformas digitais. E, claro, isto também fala que as tradicionais instituições de ensino precisam se preocupar com as maneiras pelas quais sua produção está chegando (ou não) até a população.