A cineasta paulista Suzana Amaral tinha 53 anos quando dirigiu, em 1985, seu primeiro longa-metragem, A Hora da Estrela, adaptação do clássico homônimo de Clarice Lispector. É, sem qualquer exagero, um dos filmes de estreia mais impressionantes que se tem notícia no mundo, porque ela, uma mãe de nove filhos que resolveu estudar cinema quando já era quase avó, conseguiu o que muitos consideravam impossível: transpor para a tela a prosa de abismo da genial autora ucraniano-pernambucana.
Assisti ao filme duas únicas vezes: a primeira, no já finado Cine Palace Itália, em Curitiba, há três décadas e meia. A segunda, em um destes confusos e longos dias de quarentena, no conforto do sofá de casa, coberta sobre as pernas. Meu reencontro com Macabéa, a protagonista da história, tirou-me um tanto o chão. Por sua brutal e cruel delicadeza, tão essencialmente brasileira, que de certa forma havia me escapado aos 20 anos.
Macabéa, como a Cabíria de Federico Fellini, tem um pouco a cara do coração de Jesus e encontra na paraibana Marcélia Cartaxo, premiada no Festival de Berlim por seu incrível desempenho, a atriz perfeita. A lente sensível de Edgar Moura, diretor de fotografia, realiza o olhar profundamente feminino de Suzana, que investiga, nos mínimos detalhes, o cotidiano desbotado da personagem, uma jovem migrante nordestina em uma São Paulo onde ela sonha encontrar destino, mas que a devora um pouco a cada dia.
Ela sempre pede desculpas. Por não saber datilografar, por pisar na faixa amarela de segurança do metrô, por não conhecer palavras difíceis, por ser inadequada, por existir. É feia, sem instrução, veste-se mal, come de boca aberta, tem medo de tudo, e não sabe se é alguma coisa. Para ela, o Brasil não é uma pátria mãe gentil. É abusivo, preconceituoso, e dela desdenha o tempo todo. Mais atual impossível.
Na primeira vez que vi o filme, lembro que ri muito de Macabéa. Talvez porque, em minha juventude de privilégios, não captei a sua dimensão trágica, apenas a patética.
Na primeira vez que vi o filme, lembro que ri muito de Macabéa. Talvez porque, em minha juventude de privilégios, não captei a sua dimensão trágica, apenas a patética. Na segunda, meu riso veio bem mais amargo, misturado à bile de me perceber um pouco peça da engrenagem capaz de moer a personagem e, aos poucos, triturar seus sonhos, a empurrando para debaixo da rodas do carro, que arremata sua curta existência.
É lindo como Suzana explora as descobertas de Macabéa: os conhecimentos de almanaque da Rádio Relógio Federal, os desejos noturnos de seu corpo sob os lençóis, o café com leite com Olímpico (o grande José Dumont), a quem confessa ter o sonho de se tornar estrela de cinema, enquanto ele dela ri, desdenhoso. Essa busca tímida, mas não mesmo desesperada por aceitação, por um lugar no mundo, no entanto, revela-se estéril. O Brasil é pai patrão que chuta, bate e esfola.
A dois anos de completar 90 anos, Suzana Amaral fez apenas dois outros longas-metragens, ambos adaptações literárias interessantes: Uma Vida em Segredo, a partir da obra de Autran Dourado; e Hotel Atlântico, baseado no romance de João Gilberto Noll. Mas será lembrada, sobretudo, por A Hora da Estrela, à altura da obra-prima que lhe deu origem, mas autônomo e magistral por seus próprios méritos, cintilando na tela grande do cinema nacional rumo à eternidade. Macabéa, enfim, virou estrela de cinema.