Não é tarefa difícil compreender a importância dos Racionais MC’s para a música brasileira. Contudo, para fãs, mas especialmente para leigos, a Netflix lançou o majestoso documentário Racionais: Das Ruas de São Paulo Pro Mundo.
O filme é fruto de uma facilmente inteligível obsessão da diretora Juliana Vicente com a banda, como a própria contou em entrevista ao Nós, Mulheres da Periferia. “Fiquei sete anos obcecada, construindo esse roteiro, fazendo mil ligações e somando com uma série de outras experiências que me atravessaram nesse tempo”, contou à jornalista Beatriz de Oliveira.
O documentário atravessa toda a carreira do grupo de rap mais importante da América Latina, radiografando, também, uma parcela importante do Brasil periférico pós-ditadura. Coincidência ou não, o contexto em que os Racionais emerge é carregando da energia negativa que permaneceu no país que anistiou os militares.
A periferia brasileira sempre foi a antítese do país imaginado pela ditadura.
A periferia brasileira sempre foi a antítese do país imaginado pela ditadura. Não por acaso, o método de agir das polícias militares é muito característico do período de exceção pelo qual passamos. A perseguição, as ameaças, o medo, tudo temperado com a pior dose possível de um país racista que não enfrentou, até hoje, seu passado escravocrata.
As imagens de arquivo utilizadas pela diretora do longa-metragem ajudam a enriquecer a narrativa. Se tudo está em disputa nesse Brasil do avesso, Juliana Vicente capta bem a importância de abrir os porões da memória.
Claro que nada seria tão impactante sem a presença dos quatro rappers. Mano Brown, KL Jay, Edi Rock e Ice Blue preenchem a colcha de retalhos com suas recordações, em uma espécie de convite a um mergulho nas entranhas de um Brasil à margem. E essas histórias são simples de serem assimiladas. Como canta o grupo Código Fatal em “É o Respeito que Prevalece”, “Qualquer quebrada é quebrada em qualquer lugar”.
A fotografia do filme, a cargo do trio Flávio Rebouças, Rodrigo Machado e Carlos Firmino, e a direção de arte, comandada por Isabel Xavier, parecem simples, à primeira vista. No entanto, Racionais: Das Ruas de São Paulo Pro Mundo tem um plano.
Isolados, os entrevistados ficam à meia-luz, situação que se modifica quando os quatro músicos ficam juntos, sentados em cadeiras ao redor de uma mesa. Bebem, fumam, conversam e riem, representando o direito à liberdade da periferia negra. Não há espaço para negação no documentário de Vicente, apenas os quatro pês. Poder para o povo preto.
Mas sua lente, tão acostumada às temáticas preta, indígena e LGBTQIA+, também dá atenção às mulheres. A diretora recupera um olhar que já havia traçado no curta As Minas do Rap, de 2015. Suas personagens recebem, quase todas, iluminação e enquadramento diferentes. O filme é sobre elas também, que narram, a partir de suas perspectivas, como os quatro homens negros se tornaram um espírito coletivo de luz.
Os Racionais MC’s subvertem as possibilidade de Brasil. O filme de Juliana é o testemunho disso. Uma justa perpetuação da garra das periferias brasileiras. É como se estivéssemos diante de um gol de Pelé, de um livro de Maria Carolina de Jesus ou Luiz Gama, da voz única de Elza Soares.
Os rappers paulistas merecem a exaltação de todo o país, além do recorte à margem que já os colocou de onde ninguém pode tirar. O Brasil é um país melhor pela existência deles, e o fim de ano pela audiência deste filme.
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