Embora fosse uma quarta-feira chuvosa, de trânsito caótico pós-expediente (enfatizo aqui que curitibano e direção não combinam em dia de chuva), o auditório estava apinhado de advogados, estudantes, artistas e, bem, uma jornalista cultural.
Cadeiras lotadas mesmo depois das palestras terem chegado ao fim. O mediador agradece mais uma vez a presença de todos e propõe a abertura do debate. Quem quer começar?
Do fundo da sala, uma mulher, com anotações em mãos, caminha segura até o microfone e brada: “Não há ensino mais defasado no Brasil do que o de artes”. É professora. “Até mesmo os estudantes do curso, quando os recebo em sala logo após a aprovação no vestibular, mal aprenderam o básico, os grandes nomes, os movimentos artísticos – nada. Mas eles sabem a função e a estrutura da mitocôndria, porque eles foram obrigados a aprender para entrar na faculdade de artes”.
Fim de cena.
Não entrarei no mérito do nosso defasado sistema para entrada nas universidades. Quero acertar um buraco mais embaixo: por que um ódio tão latente contra a arte e a cultura tem se alastrado como praga, como se fossem causadoras de um câncer da nação, quando o Brasil não dispõe de mecanismos fáceis para o ensino e o incentivo do meio?
Naturalmente, a inexistência do ensino básico de arte nas escolas é reflexo da complicada situação econômica e educacional do país; consequência do mau uso do dinheiro público e o pouco investimento direcionado – quando não desviado – da educação.
O discurso que tanto temos ouvido, temerosos, de que arte “é ideologia de esquerda”, que nossos “artistas são vagabundos”, que a classe “mama nas tetas do governo”, que “a Lei Rouanet é uma desgraça divina e deveria acabar”… Até onde ele encontra real veracidade?
Diferente do que você deve ter escutado por aí, não foram os seus impostos que pagaram a realização de Queermuseu, e sim uma parceria público-privada entre o Governo Federal e o Banco Santander. Esse dinheiro não é federal, é privado.
Em tempos de escola sem partido, onde a história é colocada em cheque e apontada como “fake news“, podemos ao menos confiar em nossa trajetória pessoal.
Pessoalmente, a autora que vos fala, que sempre estudou em escola particular, teve acesso ao entendimento da arte muito depois da infância e da puberdade, e somente porque quis correr atrás disso.
Quando falamos de ensino público, o diagnóstico obviamente é muito mais grave. Não é coincidência, portanto, que em um momento de grande conflito político e econômico, esse debate tenha tomado proporções dantescas, por vezes surreais.
O brasileiro comum tem pouco ou nenhum entendimento sobre arte. E, de certa forma, não é culpa dele. Além das falhas básicas educacionais, parte da comunidade artística também não parece a mais simpática quando posa do alto de um intelectualismo que pode soar deveras pomposo e elitista.
Porém, como mudamos isso? Como fazemos essas pessoas entenderem que artistas pelados não se configuram automaticamente em pedófilos, que o corpo humano somente é sujo aos olhos de quem escolhe vê-lo assim, que o fundamentalismo religioso não deve ser aplicado ao próximo e que a arte é, sim, essencial à vida em sociedade?
Colocando pingos nos i’s
Informação, na era do excesso de conteúdos e má formação, pode ser difícil de filtrar. Mas ainda existem alguns fatos contra os quais não há argumentos. Como, por exemplo, uma pesquisa de 2016 realizada pelo Instituto Ipsos e pela Federação do Comércio do Estado do Rio de Janeiro (Fecomércio-RJ), que revela que apenas 10% da população brasileira tem o costume de visitar museus e que apenas 11% frequenta exposições de arte.
Por isso, assistimos com surpresa a repentina censura de obras e performances que circulam por aí há muito tempo; como o quadro de Adriana Varejão em Queermuseu e o trabalho do incrível artista Maikon K, que foi detido em Brasília no começo desse ano e ainda sofreu uma segunda tentativa de prisão mês passado em Londrina, após o quarto ano consecutivo de realização de sua performance.
A intolerância está à espreita, somente à espera de qualquer pequeno “deslize” que possa ser violentamente descontextualizado para agitar as massas e ganhar popularidade – sim, MBL, estamos falando de você. Seria uma tentativa ferrenha de demonizar ainda mais a imagem de uma grande parte da suposta esquerda? Minha intuição me diz que com certeza.
No fim, em meio a tantas especulações vazias de verdade, um dos únicos meios efetivos de incentivo à cultura nesse país recai na famigerada e difamada Lei Rouanet. Diferente do que você deve ter escutado por aí, não foram os seus impostos que pagaram a realização de Queermuseu, e sim uma parceria público-privada entre o Governo Federal e o Banco Santander.
Apesar de fazerem parecer tão complicado e absurdo, o funcionamento da Lei Rouanet é bem simples de entender: as empresas privadas recebem isenções fiscais à medida que patrocinam eventos e projetos culturais.
Esse dinheiro não é federal, é privado. E esses projetos só vêm à luz depois de diversos processos e etapas seletivas bastante burocráticas – claro que, como qualquer política pública no Brasil, existem abusos nesse processo seletivo, que por vezes beneficia artistas já famosos em detrimento de outros. Porém, isso não justifica a sua extinção, e sim sua manutenção.
Diferente das ciências, que são literalmente exatas e portanto regradas, as artes configuram um mundo muito pessoal e infinito de possibilidades. Todos podemos ser artistas; todos temos o que expressar.
Podemos não concordar com o nu, com a crítica religiosa, com o quadro conceitual demais do artista Y; mas devemos calá-los? A liberdade e o debate configuram a essência do mundo que almejamos. E, mesmo que você ainda não saiba, a arte também.
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