“Let’s burn! Let’s burn” gritava o bombeiro Montag, enquanto as labaredas à sua frente começavam a crescer. A fogueira da vez carregava um peso maior, já que acontecia em um antigo palácio real, repleto não somente de livros, mas todo o tipo de objeto histórico de um país latino-americano.
Apesar de a ficção Fahrenheit 451 não ter sido ambientada no Brasil, quando relembramos o crescente número de museus incendiados no país – como o Museu Nacional, no último dia dois de setembro –, fica difícil não relacionar a realidade que vivemos com o livro de Ray Bradbury.
Atualmente o Brasil conta com mais de três mil museus espalhados pelo país, estes são responsáveis por arquivar, cuidar e expor os mais diversos conteúdos de cunho histórico, não só brasileiro, mas de diferentes partes do mundo, como o caixão de Sha-Amun-en-su, presente recebido por Dom Pedro II em uma de suas visitas ao Egito, o qual também pegou fogo no Museu Nacional.
É comum que a eles sejam associados, principalmente, exposições de arte, mas um importante papel atrelado a esses equipamentos culturais são as pesquisas acadêmicas, muitas vezes com estudos dependentes do material protegido por estas instituições.
Mas se existem tantos museus no país, por que eles não são frequentados? Checagens apresentadas após o incêndio revelaram que o último presidente em exercício a visitar o Museu Nacional foi Juscelino Kubitschek, e que, em 2017, o Museu do Futebol, em São Paulo, recebeu quase o dobro de visitas do Nacional, mesmo ele sendo o detentor de Luzia, o fóssil brasileiro de 11 mil anos, o mais antigo da América.
‘Existe uma elite muito forte que não reconhece o outro como cultura por aqui, e como essa elite comanda o país, nós temos dificuldade de reconhecer a pluralidade de culturas existente nele’.
Para o professor de história, Angelo Otávio Garcia Rechi, esse distanciamento entre a sociedade brasileira e a cultura deve-se, em parte, a formação cultural dos povos que para cá vieram, criando no país um multiculturalismo e não uma unidade que poderia ser chamada de cultura nacional.
“É muito complicado falar de cultura no Brasil. Existe uma elite muito forte que não reconhece o outro como cultura por aqui, e como essa elite comanda o país, nós temos dificuldade de reconhecer a pluralidade de culturas existente nele”, disserta Angelo, dando o exemplo da Europa, onde as políticas de intervenção cinematográfica do exterior são mais rígidas, consequentemente abrindo espaço para o produto local.
Enquanto governo e população não se interessam pelo acervo das instituições, a comunidade científica chora a consequência do descaso com os patrimônios históricos. Em entrevista, o paleontólogo Paulo Miranda Nascimento, conhecido como Pirula, ressalta que entre os candidatos à presidência, apenas dois planos de governo contam com propostas voltadas aos museus. Segundo Pirula, incêndios como este atingem toda a sociedade, já que com a perda dos materiais de estudo, não há como dar continuidade às pesquisas.
A professora Uiara Chagas Silva acrescenta, ainda, o atraso do Brasil em relação ao exterior no que concerne ao incentivo à pesquisa, dizendo que ele é sentido de modo que muitos pesquisadores se deslocam para outros países a fim de concluírem suas teses. “Em termos de tecnologia e educação, as nossas bases de estudo vêm muito de fora, eu diria que temos uma lacuna de uns 20 anos com literatura cientifica estrangeira à frente da nossa e só agora estamos correndo atrás.”
Uiara entende um museu como um templo da história, que deveria ser protegido devido seu valor incomparável. Para ela, sua importância se dá não apenas na pesquisa, mas no coexistir da ressignificação da cultura, crescimento e formação dos jovens que o frequentam junto das escolas, os quais, muitas vezes, só o adentram em visitas escolares.
Dizer que o brasileiro renega sua cultura não é suficiente para salvar os próximos museus das labaredas que apagam a história. Rechi acredita que é necessário incluí-los de maneira mais assertiva nas escolas, para que as próximas gerações cresçam entendendo sua importância, enquanto Pirula recomenda que as pessoas passem a frequentá-los, para que o governo volte a olhar também para os museus.
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