O longa-metragem Moonlight – Sob a Luz do Luar tem um protagonista negro, homossexual e pobre. Tudo isso está lá, na tela, e é essencial à trama, à alma do longa-metragem de Barry Jenkins, vencedor do Oscar de melhor filme. Mas reduzi-lo a essas características de seu personagem central, por mais fundamentais que elas sejam, é transformá-lo em algo que a produção não pretende ser: um libelo, um manifesto. Se, inevitavelmente, ganha uma dimensão política, isso ocorre porque toda obra que mergulha a fundo na condição humana, focando na trajetória existencial de um indivíduo frente a um meio social hostil, acaba tendo esse tipo de ressonância. Inevitável que floresça como uma obra engajada, mas essa força está mais ligada ao contexto em que o filme veio ao mundo, às vésperas do início da era Trump, do que às suas intenções dramáticas de raiz.
A jornada de Chiron é narrada em três momentos distintos: infância, adolescência e vida adulta. Em “Little” (Pequeno), a primeira parte, ele é um menino tímido, bastante inseguro, que sofre calado vários tipos de violência. Em casa, convive com Paula (a extraordinária Naomie Harris), mãe solteira, usuária de crack, que negligencia o filho, e não parece se dar conta que o garoto leva uma vida emocional e materialmente miserável, em uma vizinhança negra de classe baixa em Miami.
Solitário e bastante tímido, Chiron (na infância, vivido por Alex Hibbert) sofre bullying dos colegas de escola: algo em seu comportamento retraído o torna alvo fácil de outros garotos, que o chamam de “viado” (faggot) antes mesmo de compreender o que o xingamento quer dizer. Ele só encontra algum alento quando conhece Juan (o ótimo Mahershala Ali, vencedor do Oscar de melhor ator coadjuvante), um traficante de origem cubana que dele se torna uma espécie de figura paterna substituta, dando-lhe proteção e carinho, embora o menino sempre se mantenha reticente, trancado em si mesmo.
Inevitável que floresça como uma obra engajada, mas essa força está mais ligada ao contexto em que o filme veio ao mundo, às vésperas do início da era Trump, do que às suas intenções dramáticas de raiz.
A proximidade de Juan, que ironicamente é quem vende droga para a mãe de Chiron, lhe serve como uma espécie de lanterna em meio à escuridão, e é fundamental no seu processo de conquista de autoestima, longo e doloroso. O homem, que também terá para ele o papel de forte referência masculina, representa uma possibilidade de amorosidade e cuidado.
Vale citar aqui o tema musical de abertura do longa, o rap “Every Nigga Is a Star” (traduzido pelas legendas como “Todo Negão É uma Estrela”), de Boris Gardiner, que anuncia, já nos momentos iniciais de Moonlight, do que trata, de fato, o filme: a busca, senão a luta, de um jovem pelo amor próprio e por sua identidade. Ser negro, gay e pobre faz, sim, toda a diferença.
No próximo segmento, que recebe o título de “Chiron”, reencontramos o protagonista (agora vivido por Ashton Sanders) já no fim da adolescência, ainda profundamente ensimesmado. Juan não está mais em cena, mas sua companheira, Tereza (Janelle Monáe, de Estrelas Além do Tempo) segue a zelar pelo rapaz, cuja relação com a mãe está cada vez mais precária: Paula tornou-se completamente dependente do crack.
A rotina de hostilidades é uma constante na vida de Chiron, que não parece encontrar seu lugar no mundo – em comunidades negras pobres dos Estados Unidos, o machismo é a tônica e as evidentes delicadeza e sensibilidade do rapaz são vistas como insultos a uma identidade de gênero muito pouco flexível: os fracos não têm vez nesse mundo já tão à margem na sociedade norte-americana. Ser viril, tough, é uma forma de autoafirmação.
Da infância, ele traz apenas um amigo, Kevin (Jharrel Jerome), garoto extrovertido e carismático, com quem Chiron mantém uma relação de proximidade – e afeto (palavra-chave para a plena apreensão do filme) – que em uma noite evolui para algo mais íntimo, físico, e profundamente marcante para o protagonista. Mas a intolerância ao seu redor triunfará e causará uma mudança drástica na sua vida.
Na terceira e última parte do filme, intitulada “Black” (apelido que Kevin deu a Chiron), o personagem central, dez anos mais velho, ressurge transformado, na pele do ator Trevante Rhodes. Vestiu uma armadura performática masculina para encaixar-se e defender-se do mundo em que vive: ganhou músculos, reveste os dentes com uma dentadura dourada que simula dentes de ouro (sinal de virilidade e status na comunidade afro-americana) e seguiu os passos de Juan (o mais próximo de um pai que já teve), entrando para o tráfico.
Mas será que Chiron tornou-se, de fato, um outro homem ou é apenas uma fachada? Teria vencido sua insegurança? Nada disso fica muito claro em um filme que opta, assim como seu protagonista, pelas reticências. Há muitas elipses de tempo, não ditos e lacunas no roteiro (também vencedor do Oscar), que mais mostra do que explica. Esse é um de seus trunfos, mas pode confundir o espectador conservador e incauto. Nem tudo está à mão.
Mais problemático, porque talvez exija da audiência uma considerável suspensão da descrença, esse último segmento tem como epicentro o reencontro entre Chiron e Kevin (Andre Holland), que rende sua sequência ao mesmo tempo mais sublime e, em certa medida, problemática, por desafiar a verossimilhança. É um ajuste de contas entre os dois, mas sobretudo do protagonista consigo mesmo. Ele empreende uma jornada de retorno a seu passado, após um longo período de exílio e, talvez, de negação.
Barry Jenkins constrói uma obra intimista, poética e muito potente, que tem o mérito de não ser “sobre” negros: Moonlight – Sob a Luz do Luar é um filme negro, que nos permite ter uma visão profundamente subjetiva, com uma proximidade epidérmica, da vida de Chiron. Parte desse mérito, além do roteiro e da direção, é da belíssima fotografia de James Laxton, que explora com maestria as cores fortes, sobretudo o azul, que no filme de Jenkins é a cor mais quente, o tom da pele negra ao luar.
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