Clint Eastwood está hoje para a cultura norte-americana assim como o Vale dos Monumentos está para a paisagem dos Estados Unidos. Cenário de westerns clássicos, como No Tempo das Diligências, de John Ford, o acidente geográfico é símbolo da beleza árida e solitária da região sudoeste do país, localizada na fronteira entre Utah e Arizona. O ator e diretor, que nesta semana fez 90 anos, traz tanto no rosto, cujas marcas do tempo apenas realçam a força de seus traços, quanto na obra, retratos profundos de um país em constante mutação, uma sensação de eternidade, de solidez esculpida pelos anos. Assim como as formações rochosas do Monument Valley.
Dono de dois Oscars de melhor direção, por Os Imperdoáveis (1992) e Menina de Ouro (2004), Eastwood não cessa de surpreender, de mexer com a identidade dos EUA. E com vara curta. Em 2006, revisitou com grande lucidez e senso crítico a Segunda Guerra Mundial, no caso a campanha americana no Pacífico, com A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima, rodados em sequência. No ano passado, aos 89 anos, lançou O Caso de Richard Jewell, sobre o atentado a bomba a Atlanta, durante os Jogos Olímpicos.
Neste texto, vou discutir dois longas-metragens, ambos lançados em 2008, que dissecam de formas diversas, porém potentes, mazelas norte-americanas: A Troca e Gran Torino.
A obra de Eastwood como diretor, por mais desafetada e avessa à noção de grande espetáculo que seja, não foge de uma tradição fundamental no cinema norte-americano. A maior parte das tramas que o cineasta leva à tela lida, de alguma forma, com a temática do heroísmo. Mas não aquele messiânico, que pretende vender ao mundo o ideário defensor de um superpoder do indivíduo frente ao próprio destino, às adversidades, às superestruturas sociais.
Os heróis de Clint Eastwood, como a boxeadora vivida por Hillary Swank em Menina de Ouro, são fortes, imbuídos de coragem, mas podem sucumbir e muitas vezes fracassam, já que são profundamente humanos e quase sempre solitários. Em A Troca, Eastwood reafirma esse e outros traços essenciais em sua filmografia. A premissa, que parte de um caso real que marcou a Justiça americana nos anos 1920 e 1930, é, por si só, bastante instigante.
Os heróis de Clint Eastwood, como a boxeadora vivida por Hillary Swank em Menina de Ouro, são fortes, imbuídos de coragem, mas podem sucumbir e muitas vezes fracassam, já que são profundamente humanos e quase sempre solitários..
Em 1928, Christine Collins (Angelina Jolie, indicada ao Oscar por seu desempenho) saiu para trabalhar e deixou seu único filho, Walter, sozinho em casa. Na volta, não o encontrou. Cinco meses mais tarde, o Departamento de Polícia de Los Angeles entregou a Christine um menino que afirmava ser Walter. A mãe, no entanto, não o reconheceu desde o primeiro momento, mas as autoridades se recusaram a admitir o erro, tentando provar que, perturbada emocionalmente, a troca das crianças seria sintoma de um distúrbio mental da mulher e não de um equívoco.
Mãe solteira numa época em que filhos fora do casamento eram estigmatizados, vistos como frutos do pecado, Christine não mede esforços para provar que está certa. Deseja, sobretudo, que a polícia de Los Angeles, sobre a qual pesam várias acusações de corrupção, não desista de procurar Walter. Acaba pagando um preço bastante alto por seu inconformismo e chega a ser confinada em um sanatório para doentes mentais.

A rigor, o arco dramático descrito acima caracteriza A Troca como uma clássica odisseia vivida por um indivíduo desafiado pelo sistema, que se recusa a dar-lhe o direito à voz. Uma trama quase corriqueira no cinema norte-americano, portanto. Clint Eastwood, todavia, nada tem de banal enquanto criador e dificilmente se renderia a repetir uma fórmula já tão desgastada pelo uso.
Christine, vivida com intensidade por Angelina Jolie, é, sem dúvida, uma heroína. A Troca, todavia, vai muito além da exploração dessa coragem. Eastwood se apropria de uma personagem histórica e a reinventa – sua composição visual a aproxima das solitárias mulheres presentes em muitas das telas do pintor realista americano Edward Hopper (1882-1967). Como muitas das figuras femininas retratadas por Hopper no período da Grande Depressão, Christine está quase sempre só. Ao mesmo tempo em que transpiram melancolia, as personagens anônimas que povoam as telas do artista parecem desafiar a ordem social, com sua presença, com sua dor por vezes discreta. O pintor as torna visíveis.
Eastwood, por sua vez, quer usar o calvário da personagem central de A Troca para discutir uma questão muito mais profunda: o que é, afinal, a verdade? O filme, embora deixe claro que Christine está certa, denuncia a fragilidade da verdade da personagem, que não tem ideia do que teria acontecido com Walter. Há outras “verdades” que a confrontam. A da polícia é uma simulação, um engodo fraudulento. A da imprensa, por sua vez, se transforma com o desdobramento dos fatos, e é sempre flutuante e leviana. Sobretudo manipulada.
É exemplar a cena em que o médico do sanatório onde Christine está internada tenta convencer a personagem de que o garoto que lhe foi devolvido é Walter: como prova ele lhe mostra uma foto no jornal de mãe e filho, tirada no momento da chegada do menino depois do desaparecimento. É como se a imagem, obtida por meio de coação velada, tanto por parte da polícia quanto dos jornalistas, tornasse verdadeira uma mentira, uma simulação. Se está no papel, enquanto registro de um “fato”, deve ser verdade. E passa a ser evidência do estado de confusão mental da personagem.
Eastwood também levanta a mesma discussão sobre verdade e simulação em A Conquista da Honra, filme no qual desconstrói a heroica foto dos soldados empunhando a bandeira dos Estados Unidos depois de vencer a Batalha de Iwo Jima. Há, ainda, a verdade do pastor Briegbleb (John Malkovich), feroz crítico das autoridades municipais, cujas afirmações se vestem de discurso político, interesseiro ainda que solidário.
Por último, há o jogo de espelhos representado pelo psicopata assassino Gordon Northcott (Jason Butler Harner), cujo discurso, embaralhado tanto pela doença quanto por seu cinismo, acaba por minar algumas das poucas certezas de Christine. Isso se torna evidente quando Northcott, na véspera de seu enforcamento, a chama, sob a alegação de estar disposto a confessar seu crime e revelar o que ocorreu com Walter, mas desiste da ideia quando se vê diante da mãe de sua suposta vítima.
Eastwood, em um dos frames mais impactantes e emblemáticos de todo o filme, enquadra Christine, de novo só, por trás das grades da sala/cela onde a personagem acaba de confrontar Northcott, que acaba desistindo da confissão, negando-lhe o direito à verdade, por mais cruel que seja. Embora tenha triunfado em sua guerra contra a polícia, ela permanece encarcerada em sua incerteza.
Racismo
Em Gran Torino, Eastwood interpreta Walt Kowalski, um veterano da Guerra da Coreia, trabalhador aposentado da Ford e racista em tempo integral, que de sua varanda vê sua vizinhança ser tomada por imigrantes asiáticos. Quando uma gangue pressiona um vizinho adolescente (vivido por Bee Vang) para que roube o seu carro, um velho Gran Torino (automóvel que representa uma América em vias de obsolescência), o veterano perde a cabeça e resolve agir. E descobre que o mundo é outro e ele também tem de mudar.
Embora muitos comparem Kowalski a seu superviolento personagem na série de filmes policiais Dirty Harry, os pontos em comum entre os personagens não são fundamentais. Walt é um homem que se vê forçado a enxergar as transformações do seu país, a repensar seus valores e preconceitos. Até porque elas estão diante da sua porta.
Passados 12 anos de seu lançamento, Gran Torino parece mais atual do que nunca. A onda de protestos desencadeada nos Estados Unidos pelo brutal assassinato de Floyd George, em decorrência da violência policial na cidade de Minneapolis, atesta que a questão racial nos Estados Unidos é um barril de pólvora. Eastwood, um republicano, em sua filmografia, a despeito de suas posições políticas conservadoras, muitas delas questionáveis, segue sendo um vigoroso narrador das idiossincrasias de seu país. Monumental.
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