Com mais de 90 filmes vindos de diversas partes do mundo, a 14ª edição do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba consolidou, mais uma vez, sua vocação para ser um espaço de risco, experimentação e reinvenção estética. Em tempos de disputas simbólicas cada vez mais acirradas, o festival reafirma a importância de um cinema que se recusa a seguir caminhos fáceis ou domesticados, insistindo no gesto autoral, no olhar político e na escuta das margens.
Entre os grandes destaques da Mostra Competitiva Brasileira de Longas, Cais, da baiana Safira Moreira, emergiu como a obra mais consagrada. Ao receber os prêmios de melhor filme (Olhar), do público e da crítica (Abraccine), o filme revelou-se um território de confluência entre o íntimo e o coletivo. Safira parte do luto recente pela morte da mãe para conduzir o espectador por uma travessia lírica e memorial entre os rios da Bahia e do Maranhão. Mais que um diário de dor, o que se vê é uma reconfiguração da ausência como presença cinematográfica. Cais não é apenas um filme sobre perda, mas sobre tudo o que ainda pulsa nos rastros de quem se foi — um cinema de reencontro com o tempo, com o corpo, com a ancestralidade.
Entre os grandes destaques da Mostra Competitiva Brasileira de Longas, Cais, da baiana Safira Moreira, emergiu como a obra mais consagrada.
Também laureado com três prêmios (roteiro, som e direção de arte), Apenas Coisas Boas, de Daniel Nolasco, confirma o percurso singular de um cineasta que tem se notabilizado pela radicalidade com que trata o desejo, o silêncio e a repressão no interior do Brasil. Ambientado nos anos 1980 em Goiás, o longa é uma espécie de estudo de atmosfera em que o erotismo paira como ameaça e promessa. Nolasco — junto com seus colaboradores Guile Martins, Jesse Marmo, Naja Sodré e Marcus Takatsuka — constrói um filme de contornos bressonianos, onde os corpos falam menos pelo gesto que pelo intervalo, pela suspensão. É, sem dúvida, um dos exemplares mais precisos e potentes do cinema queer contemporâneo.
Outro ponto de inflexão veio com Explode São Paulo, Gil, de Maria Clara Escobar, que venceu os prêmios de direção e melhor atuação, para Gildeane Leonina. A força do filme reside justamente na impossibilidade de separá-lo de sua protagonista. Em uma tessitura entre ficção e documentário, Gil — mulher preta, periférica, artista — afirma-se como presença insurgente em um país que insiste em invisibilizá-la. Através da escuta atenta e da construção conjunta, Maria Clara entrega um filme que não quer representar Gil, mas fazer-se com ela: uma aliança de corpos, vozes e silêncios contra a maquinaria do esquecimento.
O cinema também se fez ritual e encantamento em Aurora, de João Vieira Torres. Vencedor do prêmio de fotografia (Wilssa Esser e Camila Freitas), o filme entrelaça fabulação e etnografia ao revisitar a memória da avó do diretor — parteira, curandeira, mulher de saberes ancestrais no sertão baiano. Há em Aurora um desejo de restituir, por meio do cinema, os mundos que nos foram arrancados. O visível e o invisível, o sagrado e o político, se imbricam como uma oferenda de resistência à colonialidade.
Também premiado, A Voz de Deus, de Miguel Antunes Ramos, propõe um olhar nada complacente sobre o universo das crianças pregadoras. A montagem de Yuri Amaral, premiada, sustenta um jogo entre passado e presente que revela, sem espetacularizar, os mecanismos de poder e mercado que atravessam a fé e a infância. Em um país onde a religião tem sido instrumentalizada de forma crescente, o filme age como uma lente crítica — mas compassiva — sobre o que se perde e o que se ganha quando Deus vira performance midiática.
Curtas-metragens
Entre os curtas brasileiros, o tocante Fronteriza, de Rosa Caldeira e Nay Mendl, foi escolhido como melhor filme. Ao acompanhar a busca de uma jovem trans por seu pai ausente na tríplice fronteira, o curta cria um mapa emocional de deslocamentos, violências e afetos. Já Americana, de Agarb Braga, recebeu o Prêmio Especial do Júri ao radiografar, com humor ácido, os tensionamentos morais e éticos de uma delegacia de interior — um espaço em que a banalidade do poder se revela por meio de diálogos ora triviais, ora profundamente inquietantes.
No cenário internacional, o destaque principal foi A Árvore da Autenticidade, do congolês-belga Sammy Baloji. Um filme que se move como arqueologia visual, desenterrando as camadas do colonialismo para confrontá-las com as feridas ecológicas do presente. Já o espanhol-português Ariel, de Lois Patiño, que venceu o Prêmio Especial do Júri, é uma espécie de experimento sensorial onde Shakespeare encontra o delírio contemporâneo. Teatro, performance e identidade são postos em fricção em um dispositivo narrativo de rara ousadia.
Entre os curtas internacionais, Conseguimos Fazer um Filme, da portuguesa Tota Alves, venceu ao captar com frescor a politização cotidiana de um grupo de meninas em férias. Já O Reinado de Antoine, produção cubana de José Luis Jiménez Gómez, recebeu Menção Honrosa ao construir uma fantasia de sobrevivência diante da dureza da realidade.
Por fim, a Mostra Novos Olhares — sempre a mais radical do festival — premiou Voz Zov Vzo, de Yhuri Cruz. Um trabalho que se inscreve como contra-arquivo: evocando a ditadura militar a partir de uma perspectiva negra, Cruz recusa as narrativas oficiais e convoca novas gramáticas para pensar a história, o trauma e a memória.
Ao término de sua 14ª edição, o Olhar de Cinema mais uma vez prova que não é apenas um festival, mas um campo de forças. Um lugar onde o cinema ainda pode ser gesto inaugural, prática de resistência e afirmação de mundos outros.
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