Há um som que só o silêncio sabe produzir: o da memória. No Brasil, onde a cultura insiste em ser apagada a cada virada de governo, há festivais que funcionam como sismógrafos daquilo que resiste. O In-Edit Brasil, que chega à sua 17ª edição em São Paulo entre os dias 11 e 22 de junho, não é apenas uma celebração de filmes sobre música — é um ritual de escuta radical. Ou, se preferir, um protesto em forma de documentário.
Sediado em espaços como o CineSesc, a Cinemateca Brasileira, o CCSP e a Matilha Cultural, o festival exibe mais de 60 títulos nacionais e internacionais, além de promover shows, debates, encontros e sessões comentadas. Um corte especial da programação estará disponível online — gratuitamente — pelas plataformas Spcine Play, Sesc Digital e Itaú Cultural Play, um gesto de democratização cada vez mais raro num ecossistema que tende ao cercamento.
Na abertura, o filme escolhido resume bem o tipo de arqueologia afetiva e política que o In-Edit pratica: Anos 90 – A Explosão do Pagode, de Emílio Domingos e Rafael Boucinha, um mergulho sem pudores no que foi, talvez, o último movimento de massa da música popular brasileira antes da era dos algoritmos. Com depoimentos de artistas como Belo, Péricles, Ludmilla e Gloria Groove, o longa funciona como manifesto: o pagode romântico como potência cultural, sim, mas também como subversão estética — uma trilha sonora de amores proibidos e masculinidades sensíveis.
A escuta como curadoria

Desde sua estreia em 2009, a versão brasileira do In-Edit — derivada do festival criado em Barcelona — consolidou-se como o principal espaço para o documentário musical no país. Mas o que é exatamente um “documentário musical” no século XXI? A julgar pela programação de 2025, trata-se de algo muito além do mero desfile de cenas de arquivo e depoimentos ilustrativos. Há uma evidente recusa à nostalgia pasteurizada dos filmes biográficos que inundam as plataformas de streaming.
É um bom resumo do espírito do In-Edit: encontrar afeto no meio do excesso, memória onde houve descaso, e política onde quase ninguém está escutando.
Em vez disso, o In-Edit aposta em narrativas híbridas, personagens dissonantes e cenas que desafiam o centro. Any Other Way: The Jackie Shane Story, por exemplo, revela a trajetória invisibilizada de uma cantora negra e trans no R&B dos anos 1960. La Singla acompanha a bailarina surda que se tornou lenda do flamenco. E Swamp Dogg Gets His Pool Painted se debruça com ternura e bizarrice sobre um ícone outsider da soul music. O que une essas histórias não é a perfeição do som, mas o ruído da vida.
No Brasil, o recorte curatorial dá espaço para filmes sobre Azulão, o bardo popular de Caruaru; Letieres Leite, o maestro que reinventou o afro-jazz na Bahia; Ave Sangria, lenda psicodélica do Recife; e Hyldon, voz seminal da soul nacional. Há ainda espaço para o experimentalismo marginal (Essência Interior, sobre Júpiter Maçã), para o regional beat do interior paulista (Regional Beat) e para o samba de raiz reinventado por Leci Brandão (Leci). O som que emana do In-Edit é múltiplo, e, sobretudo, não hegemônico.
O documentário como barricada

Ao observar a seleção de títulos e as linhas que conectam artistas e territórios, é possível enxergar no festival uma espécie de manifesto curatorial. O In-Edit não opera apenas como vitrine de filmes, mas como um território de disputa simbólica. Não por acaso, títulos como Alma Negra, Do Quilombo ao Baile, Baile Soul e Veraneio: Uma Antologia Negra emergem como atos de preservação e denúncia, cartografando resistências musicais que moldaram a identidade negra no Brasil urbano desde os anos 1950.
A insistência em celebrar figuras periféricas — sejam elas cantoras queer, DJs da velha guarda, ou radialistas piratas — transforma o festival numa espécie de arquivo vivo da contra-história musical brasileira. E é justamente aí que ele escapa da condição de evento e se aproxima da ideia de intervenção cultural.
Políticas públicas e o fantasma do streaming

Mas o que significa manter um festival como o In-Edit em 2025? Num país onde a cultura é ainda tratada como ornamento e onde o debate sobre a regulamentação das plataformas de streaming se arrasta entre pressões corporativas e urgências legislativas, o evento atua como um lembrete de que nem todo conteúdo é conteúdo. Alguns filmes precisam de fôlego, de curadoria, de risco. E, sobretudo, de público.
O festival conta com o apoio do Sesc, da Cinemateca Brasileira, da Spcine e do Ministério da Cultura, entre outras entidades — uma aliança que revela a relevância institucional do evento e sua capacidade de mobilizar estruturas públicas e privadas em torno de um mesmo projeto. A disponibilização online dos filmes, por meio de plataformas não-comerciais, também aponta para um modelo alternativo de difusão, centrado na formação de plateias e no acesso cultural — e não apenas no consumo.
O que não se escuta
Talvez o grande mérito do In-Edit Brasil seja sua recusa em se acomodar. O festival parece partir de uma pergunta inquietante: quem ainda não foi ouvido? Essa pergunta atravessa todos os filmes, curtas e sessões comentadas que compõem a programação. E, num país onde o som da exclusão costuma ser mais alto que o da inclusão, escutar é, antes de tudo, um gesto político.
Se não há tempo hábil para que Marcelo Aliche, diretor artístico do festival, responda às perguntas que gostaríamos de fazer — sobre curadoria, sobre futuro, sobre memória — o festival responde por ele. Responde em filmes como Goiânia Rock City, sobre o rock goiano como laboratório de resistência; em WR Discos, sobre o estúdio nordestino que moldou uma geração; em O Clube da Guitarrada, sobre os mestres do Pará que o Sudeste ainda finge não ouvir.
Em um dos curtas da programação, Jingles Como Política Afetiva, descobre-se o poder de uma canção em meio ao ruído da propaganda. É um bom resumo do espírito do In-Edit: encontrar afeto no meio do excesso, memória onde houve descaso, e política onde quase ninguém está escutando. Num país com ouvidos cansados, o festival é a mixtape que insiste em tocar.
SERVIÇO | 17º In-Edit Brasil – Festival Internacional do Documentário Musical
Onde: CineSesc | Cinemateca Brasileira | SPCine Olido | SPCine CCSP Paulo Emílio | Cine Bijou | Cine Matilha | Salas CEUs | CFC Cidade Tiradentes;
Quando: de 11 a 22 de junho;
Quanto: programação gratuita, exceto no CineSesc (ingresso a preço popular).
Os ingressos gratuitos, incluindo os da sessão de abertura, serão distribuídos com uma hora de antecedência, nas bilheterias das salas, sujeitos à lotação. Mais informações e a programação completa podem ser encontradas no site oficial do festival.
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