Não há nada de novo na representação do jovem indígena no ambiente urbano. Somos cobertos pelo arquétipo do imaginário indígena em vários momentos de nossas vidas: os rituais, o uso de instrumentos rudimentares, o linguajar característico, enfim. Na verdade, este é um dos assuntos que mais saturou no cinema brasileiro, que sempre tentou buscar nas narrativas ficcionais uma maneira de entender a identidade brasileira. No entanto, ao representar este mesmo jovem indígena sob a perspectiva de sua própria sexualidade, em Antes o tempo o tempo não acabava, Sérgio Andrade e Fábio Baldo conquistam um novo patamar.
No filme, Anderson é um rapaz jovem originário de uma tribo no interior do Amazonas que vai, junto com sua irmã, constantemente a Manaus, que é o maior centro urbano da região e onde há várias facilidades — situação, aliás, bastante corriqueira. É lá que ele acaba arranjando um emprego num chão de fábrica de uma empresa, provavelmente em uma das grandes indústrias da Zona Franca de Manaus, e acaba tendo contato com um novo estilo de vida. Nesse meio tempo, sua irmã tem de lidar ainda com a proteção de sua filha que, de acordo com a tradição, deve ser sacrificada porque tem uma doença degenerativa.
Certo dia, a filha de sua irmã é levada, mesmo aos prantos da irmã de Anderson, e é neste momento que ele decide ficar de vez em Manaus. Ao longo de todas as sequências, o espectador fica ciente desde o início do longa-metragem com relação aos rituais de iniciação de um homem indígena: o uso de luvas de palha quentes com formigas de fogo, talvez como uma maneira de indicar uma “masculinidade” superior vinda dos deuses. O nosso protagonista, no entanto, desconfia de todas essas práticas e as questiona de maneira a experimentar novas experiências sexuais ao longo do filme.
O grande trunfo de Antes o tempo não acabava de fato é este: saber lidar com um tema ainda tão delicado e tão tabuizado de uma maneira a também não acabar não ferindo a tradição junto. O que acontece é que a linearidade do próprio longa acaba sendo comprometida, muitas vezes, com sequências longas demais, sem nenhuma fala e mal conduzidas — talvez pela própria preferência estética dos realizadores, mas que não agrada um público de cinema de circuito comercial.
Num ano que tivemos um grande rol de filmes brasileiros com temática LGBTQI, ‘Antes o tempo não acabava’ entra de maneira tímida.
Há outro risco que se corre, esse menos perigoso, mas circunstancial, que é bem possível que os diretores possam ter se dado conta logo após a produção desse processo, que se trata da recepção da película por integrantes das comunidades das quais fazem parte os integrantes do elenco — ou mesmo de um público de cinema comercial. É possível notar isso na cena de sexo dentro de um barco à beira-rio entre Anderson e um rapaz por quem ele acaba se encantando. Há muita intimidade e intensidade expressa naquele momento que pode (e deve, porque, afinal, esse é, de certa forma, um dos papéis da arte cinematográfica) tocar um público mais conservador da região de diversas maneiras. É um experimento.
Ainda assim, um dos pontos mais problemáticos do fio narrativo é que o protagonista é sempre levado a experimentar suas experiências emocionais e sexuais com pessoas “brancas”, ou seja, que não eram originárias de tribos indígenas, como se elas fossem uma espécie de xamã durante todo esse processo. Seria pedir pouco que Anderson pelo menos tivesse algum contato com alguém da sua própria tribo e não ficasse representado de maneira tão dependente de um povo por quem ele, por tanto tempo, foi subjugado. Uma lembrança: no Brasil, poucas vezes temos espaço para assistir produções do norte do país e, quando temos, sempre é marcada pelos estereótipos (vide as sequências da maneira Tainá). Se os produtores chegaram até ali com a ruptura, poderia ser muito mais interessante levá-la a fundo, sem essas representações problemáticas.
Uma das cenas mais emblemáticas do longa-metragem é quando Anderson fica bêbado no centro de Manaus e, naquele mesmo instante, os seus parentes preparavam uma emboscada para que ele pudesse voltar às raízes por meio de um novo ritual de passagem, dessa vez mais forte. Ele começa a enxergar os michês na rua e tudo a começa a girar de uma maneira bastante decadente, mas ainda assim bastante convincente. Talvez se o filme tivesse um pouco mais de ritmo como nessa cena, junto com uma trilha-sonora mais potente, é certo que seria bastante valioso para a produção como um todo.
Num ano em que tivemos um rol muito expressivo de filmes com a temática LGBTQI, de filmes como, podemos citar apenas alguns, Meu corpo é político, da Alice Riff, e Corpo elétrico, do Marcelo Caetano, Antes o tempo não acabava entra nessa lista, porém de maneira ainda bastante tímida, mas que com certeza leva consigo o pioneirismo dessa temática na região norte do país.
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