O cinema norte-americano contemporâneo precisa – e muito – de James Gray. Embora ele transite com desenvoltura entre gêneros, indo de filmes de gângster (Os Donos da Noite) à ficção científica (Ad Astra), de dramas existenciais românticos (Os Amantes) a épicos históricos (Era uma Vez em Nova York), o diretor de forma mais ou menos evidente está sempre discutindo os Estados Unidos e suas mazelas.
Não raro, o cinema de Gray toma como cenário a região de Nova York, espécie de síntese do que há de melhor e pior no país, Armageddon Time, seu mais recente longa-metragem, que agora chega às telas no Brasil, não escapa a essa quase regra. Só que, desta vez, o diretor se volta para seu próprio passado, para fazer um doloroso acerto de contas.
O protagonista do filme é o alter ego de Gray Paul Graff, um garoto judeu de 11 anos interpretado por Banks Repeta, que vive em um subúrbio da Nova York do início da década de 1980.
O menino, que gosta de desenhar, sonha ser artista. Ele tem uma vida escolar errática porque não encontra um lugar para chamar de seu no neoliberalismo em ascensão às vésperas da eleição do futuro presidente republicano Ronald Reagan – é interessante que a família Trump, multimilionária, integra, não por acaso, a narrativa.
Paul, que por seus pendores artísticos é chamado de “devagar” e “vagabundo”, dentro da própria família, estuda em uma escola pública. Lá, ele fica amigo do garoto negro Johnny (Jaylin Webb), negligenciado pela família – mora com a avó idosa, que sofre de demência senil. Interessante que, como o menino protagonista do filme brasileiro Marte Um, também preto, ele sonha tornar-se astronauta.
Paul e Johnny desenvolvem uma forte amizade, unidos pela sensação de estarem à margem, mas, apesar de estudarem na mesma escola, um abismo social, e principalmente racial, os separa.
O garoto negro sofre evidente preconceito o tempo todo – um dos professores o hostiliza abertamente em sala de aula.
É um filme sobre rito de passagem, e perda de inocência, que se revela mais e mais devastador, porque Gray fala sobre si mesmo e de um trauma soterrado em suas memórias de menino.
Criado em uma família judaica de classe média, Paul vive às turras com o pai, Irving (o excelente Jeremy Strong, da série Succession), que o subestima por não ser bom aluno e ambicioso, como seu irmão mais velho.
O menino é mais próximo da mãe Esther (Anne Hathaway, em seu melhor desempenho em anos) e adora o avô materno, Aaron (Anthony Hopkins, em estado de graça), que legitima seus sonhos e é um contraponto para a atmosfera de capitalismo liberal que impera ao redor de Paul.
Armageddon Time se dá em dois âmbitos que se interligam. Gray contextualiza sua trama historicamente com maestria e sutileza – nada grita na reconstituição dos Estados Unidos de 1980, mas a autenticidade é intensa. Contudo, essa dimensão, digamos, mais macro, está subordinada a outra, mais profunda e intimista: o arco dramático percorrido por Paul, que, através de sua relação com Johnny, aos poucos vai descobrindo a cruel realidade de racismo e violência latente em que está mergulhado, dentro e fora de casa.
É um filme sobre rito de passagem, e perda de inocência, que se revela mais e mais devastador, porque Gray fala sobre si mesmo e de um trauma soterrado em suas memórias de menino.
Paul é obrigado pelos pais as se transferir uma escola particular, rígida e excludente, onde é forçado a vestir uniforme e não há lugar para garotos como Johnny – os colegas se referem com desprezo, senão nojo, a negros. A família Trump, sintomaticamente, é patrona do colégio.
Gray nos entreabre a porta de seu passado, de uma dor que talvez o acompanhe por toda uma vida, e o faz com a elegância de sua câmera minuciosa, com ecos da Nouvelle Vague, que perscruta, revelando todo um universo em pequenos detalhes. O filme, que é produzido pelo brasileiro Rodrigo Teixeira (de Me Chame pelo Seu Nome), dói porque é de verdade.
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